Reequilíbrio contratual por iniciativa da administração

por | 07/08/23

João Guilherme Duda. Advogado. Economista. Mestre em Políticas Públicas

A intangibilidade da equação do contrato administrativo é uma garantia constitucional do particular, cuja finalidade última é preservar a segurança jurídica e a atratividade das contratações públicas, sem as quais o interesse público não pode ser atendido.

Contudo, excepcionalmente, pela vedação do enriquecimento sem causa e em vista da supremacia do interesse público, podem se verificar situações fáticas que autortizam a revisão do contrato administrativo, por álea extraordinária e extracontratual, para restabelecer a sua equação inicial, em favor do polo contratante.

Mas o exercício dessa hipótese insere o polo contratante, para esse fim, em um novo status jurídico, isonômico ao particular contratado .

A pretensão indenizatória decorrente de suposto desequilíbrio contratual, causado por álea econômica extraordinária, não é exercício de poder polícia, nem das chamadas “cláusulas exorbitantes”, nas quais se insere o poder de alteração unilateral.

Ou seja, nesta questão não atua a administração com poder de império, nem estão os seus atos revestidos de poder de autoexecutoriedade ou presunção de veracidade.

Não há imputação de ilícito contratual ao particular, nem com a ocorrência de “prejuízo” à administração, mas apenas a um direito (em tese) de ela buscar para si a otimização dos seus resultados contratuais à luz da equação inicial da relação entre as partes.

Assim, o ônus da prova do desequilíbrio indenizável (ou causador de revisão de preços em curso), e da sua dimensão, recai integralmente à administração, na mesma medida em que recai aos particulares quando solicitam essa ordem de reequilíbrio.

Se a administração, descendo a sua análise técnica à realidade da isonomia, crer que detém provas suficientes à procedência do seu pleito, e caso não convença o particular, mediante notificação, dessa probabilidade, cabe-lhe o ingresso de ação ordinária, sujeitando-se aos ônus de uma ação judicial.

Em suma, as dificuldades dos particulares em verem respeitados os lucros estimados em suas propostas são (e devem ser) isonômicas aos desafios que serão impostos à viabilidade de pretensão expressa no ofício acima.

Qualquer medida autoexecutiva administrativa (por exemplo, constituição de dívida ativa ou sancionamentos) será tida como ato abusivo e ilegal das respectivas autoridades editoras.

Um dos impeditivos para tais pretensões é a quitação. Nas homologações de medições, particulares quitam valores e prestações específicas do contrato, salvo documento de expressa quitação geral, proposto costumeiramente como condição a aditivos e quitações recíprocas. Logo, de outro lado, a administração dá quitação quando homologa as medições e empenha valores, sobretudo se os eventos extraordinários já são conhecidos e públicos. Sobretudo, com o recebimento definitivo da obra (art. 73 da Lei 8.666/1993) a questão é sepultada, a bem da segurança jurídica e da boa-fé objetiva. Somente a responsabilidade de solidez e segurança remanesce (§2º).

Outro obstáculo é a eventual incompetência dos agentes fiscais do contrato. Como regra, as normas de suas atribuições não contemplam competências para atos de reequilíbrio. Os atos que regulam o exame de reequilíbrios costumam tratar da questão apenas sob a ótica da hipótese de requerimento pelo particular, pois em regra ele que se sujeita às áleas prejudiciais. Como o reequilíbrio em favor da administração envolve o exercício pré-contencioso de uma futura pretensão judicial, é necessária a atuação de hierarquias superiores e procuradorias.

Acontece que da notificação de pretensão de revisão ou indenização, formulada pelo agente incompetente, podem resultar demanda judicial declaratória negativa do particular, sujeitando a administração aos ônus do processo. Outra problemática é de exercício profissional regular, pois tais pretensões, via de regra, exigem atos conjuntos e privativos de advogados e engenheiros, e raramente há essa formação num único agente.

A análise interna, e a exigência (de revisão ou indenização), deve contemplar o ônus probatório da premissa de um fato extraordinário. Não é qualquer redução de custos de insumo que enseja revisão de preços contratuais e indenizações (reequilíbrio). As variações econômicas devem ser extraordinárias e de consequências incalculáveis (vez que previsível que haverá a variação). Assim como o particular não firma contratos “indexados” à variação de todos os seus insumos, a administração não pode exigir redução de preços se a redução de custos não for, comprovadamente, extraordinária. A jurisprudência, atualmente, tem sido rigorosa na classificação de áleas econômicas conjunturais como extraordinárias e suficiente ao reequilíbrio.

Importante ressaltar que um prévio reequilíbrio contratual em favor do particular não autoriza, automaticamente, reequilíbrios inversos quando os preços, além de retornarem ao normal, decaem abaixo dos preços contratuais originais (e corrigidos). No máximo, pode ocorrer o retorno ao preço contratual (corrigido) original, isto é, cessar o reequilíbrio. Não nasce um novo regime contratual indexado periodicamente a comprovações de custos. Logo, salvo se igualmente extraordinária, a queda de custos para baixo dos preços originais (corrigidos) não enseja reequilíobrio inverso.

É assim porque as variações ordinárias inserem-se na matriz de riscos do particular, pois delas não lhe resulta direito de reequilíbrio. Com frequência, particulares enfrentam prejuízos ou redução de lucros por acréscimos ordinários de insumos após a proposta ou por imprevistos de engenharia inerentes a aspectos executivos (sendo os de projeto da matriz de riscos da administração. Do mesmo modo que ganhos de eficiência por aspectos executivos de engenharia são de titularidade do particular, reduções ordinárias dos custos dos insumos lhe pertentem. Relembrando a nossa premissa, na intangibilidade da equação contratual, a administração não dispõe de poderes exorbitantes,  expropriatórios, mas comparece em posição isonômica ao particular. Do contrário, tamanha seria a insegurança que somente cartéis corruptores crônicos sentir-se-iam seguros em disputar certames públicos, com margens extraordinárias de lucros, em grave prejuízo do interesse público. 

Uma segunda ordem de diiculdades diz respeito à quantificação do reequilíbrio, caso convecido o particular, ou o juiz, da premissa de álea extraordinária. A administração, por não ser, em regra, consumidora direta dos insumos cuja variação invoca, enfreta dificuldades em demonstrar a veracidade de seus critérios comparativos. Explica-se, particulares possuem, além de eventuais pesquisas de preços (muitas delas públicas), comprovações do preço real de aquisição de tais insumos. Quanto menor o órgão ou o ente pretendente, maior será a imprecisão de suas bases amostrais de “preços de mercado”.

A invasão aos negócios do particular com seus forneceredores dependeria de ordem judicial, ao nosso ver equivocada, pois violaria sigilo fiscal, segredos comerciais, e ainda redundaria em informações inverídicas, porque os preços podem estar abaixo de mercado em razão de eficiências e condições comerciais inerentes ao particular e à iniciativa privada, não sendo lícito à adminsitração expropriar tais benefícios. Quando a administração deseja se expor ordinariamente à variação de determinados insumos, tal qual o particular, ela deveria licitar a sua aquisição e, em separado, somentes os serviços de engenharia, com empreitada na qual o dono da obra (contratante) fornece os materiais.

Outro problema é na variável quantidade, não apenas nos preços. Como dito acima, risco ordinário de engenharia, de execução, são do contratado. Do mesmo modo, eficiências ordinárias, quando o particular consegue atender aos requisitos técnicos do projeto básico com economia de materiais, em razão de investimentos em equipamentos e know how, pertencem ao particular. Assim, cabe à administração comprovar qual a quantidade de material efetivamente aplicada. Ausente tal prova, deve utilizar como quantitativo não aquele previsto em projeto básico, mas aquele mínimo com o qual, no limite inferior, seria possível se atingir à performance, por exemplo, de um pavimento de CBUQ ou de uma estrutura da concreto exigida no projeto.

Por fim, a administração não poderá impor os seus critérios de cálculo, gozando de presunções em seu favor. Critérios de período de inflação (ou deflação), preservação do BDI, decomposições de itens etc. devem ou convencer o particular ou a um juiz imparcial, auxiliado por perito imparcial.

Sobre um BDI, uma ressalva: na prática, as despesas indiretas não caem proporcionalmente com a redução de um custo direto. As despesas de capital (próprio e de terceiros) costumam ser antecipadas em vista dos preços originalmente estimadas, assim como seguros e provisões de riscos. Do mesmo modo, as despesas de administração são estimadas em razão do valor inicial do projeto, e podem até crescer com ele, mas não se reduzem (caso reduzam) na mesma velocidade e proporção.

Um caminho para a administração pode ser o ajuizamento da produção antecipa de provas, a fim de viabilizar acordo com o particular ou a delimitação de sua futura ação. Assim o agente público expõe a administração a menores riscos de indenizar ou sucumbir e, consequentemente, preserva a sua própria responsabilidade pessoal face a órgão internos e externos de controle.

Logo, é possível à administração solicitar, de modo amigável ou judicial, reequilíbrio contratual em seu favor, em posição isonômica ao particular. A todos os ônus que o particular enfrenta na mesma posição, soma-se o regime da indisponibilidade e da supremacia do interesse público em sua dimensão da relação funcional. Isto é, assim como, dentro da autonomia privada, haveria regimes internos de consequências para uma pretensão açodada de reequilíbrio que se tornasse onerosa à empresa, há no âmbito público consequências práticas internas ao abuso dessa possibilidade.