A NARRATIVA DA “JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE” E A RESILIÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO

por | 29/01/25

João Guilherme Duda, advogado, economista, mestre em políticas públicas.

A “judicialização da saúde” é um debate oriundo do controle jurisdicional de políticas públicas, sobretudo no âmbito de decisões judiciais cominatórias dirigidas a agentes e órgãos do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse contexto, a intervenção judicial deveria ser excepcional e pautada por uma análise crítica dos possíveis excessos e inconveniências.

Entretanto, esse discurso foi transposto para um campo diverso, que compartilha o tema das políticas de saúde, mas opera sob um regime jurídico absolutamente distinto: as relações contratuais entre particulares, sujeitas à proteção consumerista e à regulação setorial específica. Enquanto no setor público a “judicialização da saúde” é tratada como controle jurisdicional de mérito administrativo, no setor privado trata-se do exercício legítimo de pretensão judicial por inadimplemento obrigacional, amparado pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e pela regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Dessa forma, a crítica à “judicialização da saúde” passou a ser instrumentalizada para justificar a inadimplência contumaz de fornecedores de serviços de saúde, transformando o acesso à jurisdição em algo negativo. Esse discurso favorece um cenário de impunidade civil, onde o consumidor é vilanizado por exercer seus direitos, sofrendo revitimização ao buscar tutela jurisdicional. Paralelamente, observa-se a adoção de juros moratórios inferiores ao custo de capital do devedor, a leniência ao argumento do “mero aborrecimento” e a mitigação dos danos morais por meio do congelamento nominal de valores em precedentes antigos, especialmente na primeira fase do “método bifásico“.

Sem embasamento empírico robusto, tem-se propagado, por meio de processos, palestras e redes de relacionamento pessoal, a narrativa de que o Poder Judiciário representa uma ameaça à viabilidade financeira das operadoras de planos de saúde. Contudo, os dados do setor revelam um crescimento constante no interesse de grupos internacionais de investimento, fusões e aquisições, bem como investimentos expressivos em verticalização por parte de cooperativas (como aquisição de hospitais e laboratórios).

Todos os elementos descritos pela literatura econômica e regulatória para a captura regulatória estão presentes, estendendo-se agora ao Poder Judiciário, e não mais apenas às agências reguladoras. Como a demanda dos consumidores é difusa, é natural que os especialistas da área (médicos peritos, advogados, assessores) sejam aqueles com maior relação profissional com as operadoras de planos de saúde. Assim, sua formação técnica e visão do problema tendem a estar alinhadas com os interesses empresariais, o que lhes permite influenciar de maneira desproporcional a cognição judicial sob o rótulo de “especialistas”.

Entre dezembro de 2019 (REsp 1.733.013/PR) e 2023, a tese do “rol taxativo” foi defendida com vigor por setores interessados, mas acabou por fracassar no STJ, não sem antes gerar precedentes minoritários prejudiciais aos consumidores. Prevaleceu, a partir de 2023, a tese do “rol taxativo mitigado” (EREsp n.1.886.929/SP), que contempla exceções relevantes, como tratamentos para câncer (AgInt no REsp n. 2.036.691/MG), medicamentos off-label e experimentais devidamente justificados (AgInt no REsp 2.016.007/MG).

Essa jurisprudência assegura que a cobertura dos planos de saúde, especialmente em mercados concentrados como Curitiba, não fique restrita ao mesmo rol mínimo nacional, que inclui apenas tecnologias básicas. Caso contrário, planos de saúde regionais poderiam oferecer coberturas inferiores às do SUS, ainda que com maior conforto. Garantir a coexistência de planos de saúde com tecnologias médicas avançadas é essencial para evitar que a atualização da medicina em determinadas regiões fique reprimida e inviável, forçando pacientes a buscar atendimento em centros mais desenvolvidos, como São Paulo.

Assim, a Magistratura se reafirma como o mecanismo institucional por excelência para conter a pressão de atores econômicos excessivamente poderosos, especialmente quando seus interesses colidem com direitos subjetivos contratuais e fundamentais. O debate sobre a judicialização da saúde deve, portanto, ser tratado com rigor e seriedade, evitando narrativas que favorecem a impunidade civil e a captura institucional em detrimento da lícita proteção dos consumidores.