João Guilherme Duda
Advogado (UFPR), Economista (FAE), Mestre em Políticas Públicas (UFPR)
I. Introdução
A cessão de créditos, inclusive futuros, oriundos de contratos administrativos é uma possibilidade jurídica e uma prática consolidada no âmbito da União. Após o Parecer JL-1/2020 da AGU, a União operacionaliza e regulamenta essa realidade, pelo portal “AntecipaGov” e pela IN 53 de 08/07/2020, e suas atualizações. Mesmo o STJ, em sua atividade administrativa, possui um capítulo específico regulamentando tais operações em seu Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos (3ª ed. Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos).
Contudo, o problema que colocamos é mais ousado: (i) se pode a administração pública, sem previsão em edital ou regulamento, se opor à cessão de crédito; (ii) quais são os limites que a legalidade impõe à decisão administrativa de inserir, em regulamento, edital ou cláusula contratual, limitações ou vedações a tais faculdades dos seus credores.
Iremos abordar tanto a cessão de créditos, quanto a sua disposição como garantia junto a operações de crédito (empréstimos, financiamentos, linhas de crédito) com terceiros, podendo assumir variadas formas (penhor, alienação fiduciária e cessão fiduciária, por exemplo).
Também é preciso abarcar diferentes situações de maturação do crédito. Créditos meramente esperados a partir da futura execução de prestações pelo contratado pela administração pública (aqui chamaremos de “créditos futuros”), créditos por serviços já executados e aguardando as etapas de medição e empenho, e créditos aguardando apenas liquidação (pagamento), em geral aqui entendido como “créditos” em si.
II. Titularidade e disposição do crédito
A possibilidade de cessão do crédito é inerente à sua titularização. Quem é proprietário de coisa pode usar, fruir e dispor. O titular de direito patrimonial disponível pode exercê-lo ou cedê-lo, inclusive em garantia.
Mesmo quanto o crédito é devido pelo poder público, é regra geral a possibilidade de cessão a qualquer momento (sendo corrente a prática de cessão de créditos judiciais e de precatórios).
Código Civil: Art. 286. “O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.”
As restrições legais gerais emergem quanto à eficácia da cessão em relação ao devedor. Isto é, se ele de fato fica obrigado a pagar ao cessionário para que a sua obrigação seja extinta – ou se ela também se extingue caso o pagamento se dê ainda ao cedente.
Código Civil: Art. 288. “É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1 o do art. 654.”
Código Civil: Art. 654. “Todas as pessoas capazes são aptas para dar procuração mediante instrumento particular, que valerá desde que tenha a assinatura do outorgante. § 1° O instrumento particular deve conter a indicação do lugar onde foi passado, a qualificação do outorgante e do outorgado, a data e o objetivo da outorga com a designação e a extensão dos poderes conferidos.”
Código Civil: Art. 290. “A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.”
Código Civil: Art. 292. “Fica desobrigado o devedor que, antes de ter conhecimento da cessão, paga ao credor primitivo, ou que, no caso de mais de uma cessão notificada, paga ao cessionário que lhe apresenta, com o título de cessão, o da obrigação cedida; quando o crédito constar de escritura pública, prevalecerá a prioridade da notificação.”
Vê-se que o direito de ceder seu crédito é potestativo em relação ao devedor da obrigação. Salvo norma anterior expressa, nada pode opor. O ônus geral é que deve apenas o devedor estar cientificado da cessão, para que esteja obrigado ao direito do cessionário.
Com efeito, a cessão de crédito não modifica o conteúdo da relação obrigacional em que nasce o crédito. Em outras palavras, quando o credor cede o seu crédito, ele não modifica o contrato existente com seu devedor. Ele apenas modifica um aspecto do pagamento: a quem.
III. Cessão de créditos face a administração pública
A legislação de licitações não possui restrição geral à cessão de créditos titularizados pelos particulares e expressamente adota o Código Civil (e as normas acima) como legislação supletiva.
Lei 14.133/2020: “Art. 89. Os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.”
Contudo, pode haver interesse da administração, que autorize, se explícito e motivado em edital ou em atos administrativo normativos que o vinculem, a restrições, condições e procedimentos para que a cessão de crédito seja eficaz em relação ao poder público contratante.
A elaboração da minuta do contrato administrativo é atividade vinculada – sendo a Lei 14.133/2021 a principal delineadora de tal competência. Não constando as condicionantes de cessão de crédito entre as cláusulas que o seu artigo 92 coloca como obrigatórias a todo contrato administrativo.
Pelo princípio da legalidade em regime de direito público, atos que restrinjam interesses de particulares (e, indiretamente, até mesmo a competitividade do certame), ainda que tidos como discricionários, devem ter clara motivação de atendimento ao interesse público. Isso exige ponderar benefícios e malefícios das cessões de crédito.
De um lado, não restringir cessões de crédito favorece a competitividade e a economicidade da contratação, ao manter abertas mais opções de financiamento ao universo de potenciais competidores. Isso significa, potencialmente e, que determinados competidores se viabilizam por tais linhas de crédito – ou reduzem suas despesas indiretas financeiras, com impacto favorável ao BDI e ao preço da contratação. Para contratos em curso, o favorecimento do acesso a crédito pelo contratado coopera com o desempenho (e mitigação de riscos de inexecução) do contrato.
De outro lado, a cessão de créditos significa uma atividade adicional de controle financeiro pela administração. Uma vez cientificada, são necessários todos os cuidados para que a administração não termine por pagar a obrigação a quem não é (mais) seu titular, mantendo-se devedora, recaindo em dívida duplicada. Outros aspectos, fiscais e financeiros, podem ser ponderados, como os prazos necessários para os procedimentos que assegurem que a administração, uma vez cedido o crédito, detenha as condições práticas de realizar o pagamento de modo não apenas civilmente eficaz (para extinguir a sua dívida) mas regular pela ótica fiscal e orçamentária.
Assim, no caso de cessão de créditos detidos face à fazenda pública, é lícito e recomendável que o poder público contratante, em âmbito normativo infralegal, por regulamento ou cláusula editalícia e contratual, regulamente as condições para que a cessão de crédito entre o contratado e terceiro lhe seja eficaz e obrigue a administração ao pagamento ao novo titular.
Tais condicionantes podem abranger prazos mínimos, apostilamento, correta identificação de cessionários e seus dados bancários, especificação (reiterada) em notas fiscais e medições, para resguardar todas as informações no processo de empenhora e liquidação. Também não seria irrazoável, por segurança jurídica, que a administração restrinja o número de cessões sucessivas (até mesmo a uma única).
Por fim, quanto à “regularidade” subjetiva, do cedente e do cessionário, a que se observar cada contrato e a legislação aplicável. Por exemplo, na Lei 14.133/2021, nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra (art. 121, §3º), e somente neles, a administração pode, para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas, mediante disposição em edital, condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato; efetuar o depósito de valores em conta vinculada; e a até efetuar diretamente o pagamento das verbas trabalhistas, que serão deduzidas do pagamento devido ao contratado. Fica evidente, que nesse tipo de contrato, as condicionantes de cessões de crédito serão muito restritivas e, mesmo se imprevistas, decorrem das próprias previsões contratuais relativas ao pagamento, acima.
Em síntese, a cessão de crédito não modifica o contrato, nem torna a administração pública “parte” de relação contratual com terceiro que não passou pelo seu crivo de regularidade subjetiva (habilitatório). A cessão de crédito de contratado particular a terceiro inidôneo, ou por força de relação inidônea, faz recair todas as suas responsabilidades exclusivamente sobre cedente e cessionário. Não há um “dever de compliance” de a administração vigiar com quem seu credor faz negócios ou como aplica os seus recursos patrimoniais (créditos inclusive). O dever da administração é de bem apostilar a operação, ou formalizar a alteração contratual que julgar necessária, para assegurar que seus agentes cumpram com o direito e previnam tanto prejuízo ilícito ao erário, como ao contratado e seu cessionário.
IV. Créditos futuros e recebíveis futuros
Os créditos futuros referem-se a direitos de crédito que ainda não foram constituídos, mas que são esperados com base em um contrato ou relação jurídica preexistente. Nesse sentido, o crédito futuro é uma expectativa de direito de recebimento decorrente da execução continuada de uma obrigação principal, como ocorre em contratos de empreitada, prestação de serviços ou fornecimento contínuo. Embora o crédito ainda não exista no momento da constituição da garantia, ele tem uma origem jurídica definida e pode vir a se constituir desde que o devedor realize as obrigações contratuais de forma satisfatória e o contratante honre os pagamentos.
Já os recebíveis futuros são valores que, embora esperados, decorrem de operações ou contratos que podem ainda não ter sido firmados com as fontes pagadoras, pois se referem a ingressos projetados, como a arrecadação futura de tarifas de um concessionário.
Logo, somente créditos por serviços já prestados e créditos futuros (com base em contrato já existente, a executar ou em execução) podem ser objeto de cessão eficaz face a administração.
V. Utilização de créditos futuros como garantia
A garantia se constitui sobre direitos futuros que, ao se concretizarem, passam a integrar a garantia. Essa prática é muito comum em financiamentos para execução de empreitadas, onde o empreiteiro busca crédito junto a instituições financeiras e oferece como garantia os valores a serem recebidos ao longo da execução do contrato. A grande vantagem para o agente financeiro é que os créditos contratuais não chegam a ingressar no patrimônio do financiado, quando poderiam ser objeto de pretensões de terceiros, inclusive privilegiados ou mais avançados nos atos de cobrança.
Na Cessão Fiduciária de Créditos Futuros, o devedor transfere ao credor fiduciário (geralmente uma instituição financeira) a titularidade de créditos que ainda não se constituíram, mas que são esperados a partir de um contrato de execução em andamento. Essa cessão é firmada antecipadamente, e o direito sobre os créditos futuros passa a integrar a garantia à medida que os créditos são gerados. Ela se operacionaliza, geralmente, de duas formas: (i) com o inadimplemento do devedor, o seu credor notifica a administração para que passe a lhe pagar diretamente; (ii) o contratado recebe os pagamentos do contrato administrativo em conta de sua titularidade, mas custodiada pelo próprio credor fiduciário ou por instituição financeira contratada para esse fim.
Na alienação fiduciária de créditos futuros, o devedor também antecipa a entrega desses créditos como garantia. Porém, ao contrário da cessão fiduciária, a propriedade dos créditos futuros é transmitida condicionalmente ao credor, que mantém a titularidade fiduciária até que a obrigação seja cumprida integralmente. Isso cria uma relação em que, juridicamente, o credor já é o proprietário dos créditos futuros, embora eles ainda não tenham sido constituídos. Isto é, neste caso, a Administração Pública faz os pagamentos contratuais diretamente ao credor fiduciário, independentemente de haver inadimplemento entre devedor e ele.
Como se vê, haverá consequências fiscais e financeiras na liquidação do empenho (a quem se paga), devendo ser objeto do correto apostilamento – ou aditivo contratual.
VI. o parecer jl-1/2020 da agu
Ainda sob a legislação licitatória anterior (8.666/1993), a AGU formalizou entendimento de que não há óbice às cessões de créditos, salvo vedação em edital ou contrato, quando a administração antevê que tais operações podem prejudicar os interesses público e da administração.
(…) 2. Consolide-se, por conseguinte, o entendimento no sentido de que não há óbice jurídico para formalização de cessão de crédito em contratos administrativos, desde que não haja vedação em cláusula contratual ou no instrumento convocatório, na esteira do art. 54 da Lei nº 8.666, de 1993, que enseja a aplicação supletiva do Código Civil ao regime jurídico dos contratos administrativos. (…) a Administração Pública pode avaliar tecnicamente se eventual cessão do crédito enseja embaraços ao atendimento do interesse público perseguido pelo objeto a ser contratado, se a cessão de crédito compromete a regular execução e fiscalização do objeto, dentre outras razões ou elementos que porventura não recomendem que seja admitida a cessão de crédito diante das especificidades ou peculiaridades do caso concreto (…) 4. A cessão de crédito nos contratos administrativos não enseja alteração da contratada, à qual continuará responsável pela execução do contrato administrativo, nem tampouco compromete a liquidação do valor devido a partir da fiscalização da execução ou inexecução contratual, ou seja, a apuração do pagamento devido à cessionária será precisamente àquele que seria devido à empresa contratada (cedente), sem prejuízo, pois, da aplicação de todas as exceções e defesas oponíveis ao pagamento, e das cláusulas exorbitantes ao direito comum ínsitas ao regime jurídico de direito público aplicável aos contratos administrativos.
Ao mesmo tempo em que não reconhece aos órgãos da adminisração federal plena discricionariedade para vedar ou restringir operações de cessão de créditos dos seus contratados, pela sua leitura do interesse público, a AGU preferiu condicionar a eficácia de tais cessões a certos requisitos. Alguns exemplos são a celebração de aditivo e a regularidade fiscal e trabalhista também do cessionário. Do mesmo modo, deveria o cessionário não estar submetido a sanções que o impeçam de contratar com o poder público. Essa cautela se mostra razoável para prevenir que a cessão de crédito, ao invés de atender ao interesse de barateamento do custo financeiro de execução dos contratos, sirva como mecanismo de viabilização de uso de licitante interposto por sócio oculto. Para essa preocupação, uma restrição plausível seria limitar as cessões a instituições integrantes do sistema financeiro nacional, todavia tal restrição poderia encarecer o crédito direto de fornecedores-chave, como distribuidores de energia, de derivados de petróleo, arrendantes e locadores de bens capital etc.
Outro aspecto do parecer é a sua refutação às supostas proibições dessas operações pelos artigos 63 da Lei nº 4.320/64 e 44 do Decreto nº 93.872/86, bem como o inciso VI do artigo 78 da Lei nº 8.666/93.
O artigo 63 da Lei nº 4.320/64 trata da fase de liquidação da despesa pública, cujo objetivo é verificar a titularidade do crédito e garantir o pagamento à pessoa correta, considerando o cumprimento dos requisitos formais e legais do processo. A interpretação contrária à cessão argumenta que ele exigiria o pagamento diretamente ao contratado original, dificultando ou inviabilizando o reconhecimento do cessionário como o novo credor. No entanto, o parecer esclarece que o artigo 63 não proíbe a cessão, pois o termo “credor” não está necessariamente atrelado à identidade do contratado, mas à figura do beneficiário final do pagamento, que pode ser o cessionário. Assim, a liquidação da despesa é um procedimento que determina “a quem se deve pagar” para extinguir a obrigação e pode incluir o novo titular do crédito em razão da cessão.
O artigo 44 do Decreto nº 93.872/86, por sua vez, define que o pagamento deve ser feito em conta bancária indicada pelo credor. Novamente, a posição de “credor” nem sempre será a mesma de “contratado”, desde que haja a formalização adequada da cessão. Além disso, a cessão pode incluir a indicação de uma nova conta bancária pertencente ao cessionário, desde que esteja devidamente apostilada perante a Administração.
Já o inciso VI do artigo 78 da Lei nº 8.666/93 trata de hipótese de rescisão contratual por “cessão ou transferência, total ou parcial” do contrato sem autorização expressa. De acordo com o parecer, essa cláusula refere-se especificamente à cessão da posição contratual ou cessão de contrato, que é uma figura jurídica distinta da cessão de crédito (resultante do contrato). A cessão de posição contratual envolve a transferência da titularidade e das obrigações do contratado para um terceiro, o que altera substancialmente o vínculo entre o contratado e a Administração e requer a anuência expressa desta última. Na cessão de crédito, entretanto, o objeto do contrato e a execução permanecem sob responsabilidade do contratado original, de modo que não ocorre qualquer alteração na execução do objeto pactuado, mas apenas uma substituição do credor que recebe o pagamento. Inclusive, reitere-se, o valor a ser pago segue inalterado e sujeito às prestações cumpridas pelo contratado, não pelo seu cessionário.
Em conclusão, a cessão de créditos em contratos administrativos é juridicamente permitida e pode contribuir para a viabilização financeira de contratos, especialmente no setor de obras e serviços de engenharia. Indo além, ela não pode ser vedada ou restringida na fase de execução contratual, salvo previsão em regulamento, edital ou cláusula contratual. Por fim, quaisquer restrições ou vedações a essas operações, tanto em regulamentos quanto em editais, devem obedecer rigorosamente à legalidade e serem justificadas com base nos princípios de proporcionalidade e legalidade.