A “Taxatividade Mitigada” do rol da ANS no STJ

por | 02/02/23

E A LEI N° 14.454/2022 NAS COBERTURAS DE TERAPIAS AVANÇADAS PELOS PLANOS DE SAÚDE

Autores: João Guilherme Duda, Gabriel Cordeiro de Sales e Laura Cury Balbinotti

Após mais de uma década de jurisprudência (estadual e superior) estabilizada no sentido do caráter exemplificativo do ROL da ANS, o Min. Luis Felipe Salomão (REsp 1733013) inaugurou, em dezembro de 2019, a corrente pela sua “taxatividade”. Isto é, os planos só estariam obrigados a cobrir os tratamentos inclusos na lista de coberturas mínimas obrigatórias da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça, chegou ao julgamento de dois Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp 1.886.929 e EREsp 18.897.040) para pacificar essa divergência. A solução a que chegou foi amplamente noticiada e comemorada por entidades e assessorias de imprensa representativas de planos de saúde como uma vitória judicial, firmando-se aquela corrente inaugurada no REsp 1.733.013/PR. 

Exceções à “Taxatividade do rol da ANS”

Todavia, a posição estabilizada em 2022 enfatiza e detalha as exceções pelas quais estariam os planos obrigados a coberturas não contempladas pelo rol da ANS, delineando a jurisprudência conhecida como “taxatividade mitigada”. Algumas considerações merecem ser formuladas sobre esse novo posicionamento.

  • Não se trata de um precedente não vinculante, isto é, os tribunais locais ainda podem decidir fundamentando-se na não taxatividade da lista da ANS (overruling), impondo aos planos o ônus de recorrer ao STJ. Há argumentos não enfrentados no STJ acerca da taxatividade que ainda podem ser acatados pelos tribunais locais e provocar o retorno à jurisprudência anterior. O mais emblemático deles é o caráter nacional do rol da ANS (que exige disponibilidade nacional da terapia para a incluir), impondo uma lista básica às diferentes realidades tecnológicas e econômicas regionais, em prejuízo dos consumidores de grandes centros. A pressão dos casos concretos e das redes de relações humanas locais irá pressionar naturalmente nesse sentido.
  • O próprio leading case (precedente-chave, dos Embargos de Divergência julgados em 2022) contempla diversas “válvulas de escape” (exceções) para obrigar os planos a terapias não cobertas pelo Rol da ANS. A verificação dessas exceções depende de análise de fatos e provas em concreto que, em normalidade institucional, não são revisadas pelo STJ. Ou seja, caso as pretensões e julgamentos estejam bem fundamentados em primeiro e segundo grau de jurisdição, espera-se a procedência da ação até o seu trânsito em julgado, sem provimento de recurso do plano de saúde no STJ.

A jurisprudência atual, portanto, adota técnicas de conceitos indeterminados e válvulas de escape ao seu radicalismo. Tanto pela insegurança jurídica aos casos em trâmite, quanto pela vedação do controle de legalidade das normas (ou interpretação das normas) editadas pela ANS. Assim, as chamadas “exceções” ao rol da ANS constituem um esforço político de conciliação entre os agentes do setor (consumidores, planos de saúde, médicos e a própria agência reguladora).

Rol taxativo da ANS: retrocesso ao avanço da medicina no Brasil

Tratar o rol da ANS como “taxativo” seria também um esforço contra o avanço da medicina no Brasil. Considerando os procedimento previstos no rol são de cobertura obrigatória, desconsiderando as desigualdades existentes em todo o território nacional, o resultado é a baixa nivelação da tecnologia da saúde no país. As primeiras escolhas terapêuticas, para doenças graves, de médicos de primeira linha e em grandes centros urbanos, jamais estarão atualizadas no rol, vez que a sua regra é de que nele somente entram terapias de bom custo-benefício e plena disponibilidade em território nacional.

Diante do impacto da tese firmada pela Corte Superior, nas semanas seguintes àqueles julgamentos, o Congresso Nacional propôs e aprovou projeto de Lei, cuja tramitação se deu em regime de urgência e culminou na Lei n° 14.454/2022, em vigor desde 22.09.2022, alterando a Lei n° 9.656/1998.

A nova legislação estabelece critérios mais flexíveis para que os beneficiários dos planos de saúde solicitem cobertura de procedimentos que ainda não integram o rol da ANS. A lei contempla uma espécie de “rol ainda mais mitigado”.

Comprovação médica como fundamentação para a “taxatividade mitigada”

É necessário que haja comprovação da eficácia do tratamento recomendado ao paciente, além de a intervenção médica ser recomendada pela Conitec, do SUS ou por um órgão de avaliação de tecnologias em saúde que possuam um renome internacional, desde que essas tenham sido aprovadas no Brasil também.

“Art. 10. § 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:

I – exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou

II – existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais”.

Dessa forma, o deslinde da controvérsia se dará em relação à comprovação de que a indicação médica é devidamente justificada ao caso clínico do demandante, além de prova de que o tratamento possui aprovação da comunidade médica com base em medicina baseada em evidências ou aprovações pelos órgãos técnicos.

A principal modificação é a não exigência do requisito criado pelo STJ: “não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS”. Tal requisito retirava do profissional médico a prerrogativa pela indicação do tratamento e concedia à agência reguladora (e também ao Poder Judiciário) o poder de decisão acerca de condições clínicas que seriam próprias da relação médico-paciente.

Competência regulatória no sistema de saúde brasileiro: ANS vs Anvisa.

A lei resolve também uma grave distorção institucional de percepção de competências regulatórias. No sistema de saúde brasileiro, cabe à ANVISA a regulação técnica (eficácia, segurança etc.) de toda o sistema e à ANS a regulação econômica do sistema privado (suplementar), a partir das premissas técnica da ANVISA. Prestigiar listas da ANS em detrimento da ANVISA seria tornar o critério econômico superior ao sanitário, quando a Constituição exige o oposto.

O equilíbrio econômico somente pode servir para se negar o acesso à melhor opção de saúde em caráter absolutamente excepcional, seja no SUS, seja diante de planos de saúde. A lei admite, inclusive, a autoridade de agências sanitárias internacionais. É isso que se deve ter em mente ao interpretar o requisito da “recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde” 

 Jamais coube cabe à ANS (ou à CONITEC) definir a “experimentalidade”, eficácia, segurança ou conveniência técnica de determinado procedimento ou tecnologia, pois é competência própria da ANVISA e da comunidade científica (médica em especial) ou, havendo Resolução específica, suprindo omissões de agências sanitárias estatais, do CFM (Conselho Federal de Medicina), aqui apenas para terapias experimentais controversas após a Lei do Ato Médico (Lei 12.842/2013).

           Assim, o ponto controvertido (e de atenção por usuários, médicos e advogados) das causas que pedem coberturas negadas por planos de saúde será, em regra, a comprovação da ausência de alternativa terapêutica equivalente no Rol da ANS em concreto.

– Escritório JGDuda Sociedade de advogados: www.jgduda.com.br