A Cláusula Compromissória nas Licitações Públicas: Riscos, Cuidados e Oportunidades de Controle

por | 02/06/25

João Guilherme Duda – Advogado, Economista e Mestre em Políticas Públicas pela UFPR
JG Duda & Sales Sociedade de Advogados

A adoção da arbitragem como mecanismo de resolução de conflitos em contratos administrativos tornou-se uma realidade consolidada no Brasil, especialmente após a entrada em vigor da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021). Dentre os dispositivos inovadores da norma, destaca-se a previsão expressa da arbitragem como meio legítimo de composição de litígios entre o poder público e particulares.

No entanto, embora a arbitragem prometa ganhos em celeridade, tecnicidade e eficiência na resolução de controvérsias, sua inserção em licitações públicas exige atenção redobrada à forma e ao conteúdo da cláusula compromissória. Mais do que um detalhe técnico, trata-se de um instrumento estruturante da relação contratual e da matriz de riscos entre as partes. Quando mal redigida, a cláusula pode gerar efeitos negativos significativos: insegurança jurídica, restrição da competitividade, nulidades, judicializações e desequilíbrios financeiros.

1. O que é a cláusula compromissória e por que ela importa?

A cláusula compromissória é a previsão contratual que determina que eventuais conflitos decorrentes do contrato serão resolvidos por arbitragem — e não pelo Judiciário. No caso da Administração Pública, ela normalmente já vem inserida no edital de licitação, vinculando todos os licitantes desde o momento da proposta.

Diferentemente do setor privado, onde a cláusula nasce de um processo bilateral de negociação, na contratação pública sua redação é feita unilateralmente pela Administração. Isso impõe a necessidade de mecanismos de controle e revisão por parte dos licitantes e dos órgãos de controle, a fim de garantir sua legalidade, funcionalidade e aderência ao interesse público.

2. Riscos das cláusulas arbitrais mal formuladas: as “convenções patológicas”

A doutrina arbitral tem identificado, com preocupação, as chamadas “convenções patológicas”: cláusulas compromissórias redigidas de forma omissa, ambígua ou contraditória, que inviabilizam o funcionamento adequado da arbitragem. Alguns exemplos comuns incluem:

  • Ausência de indicação da câmara arbitral;
  • Escolha de instituição não credenciada;
  • Regras contraditórias entre diferentes regulamentos;
  • Falta de definição quanto à sede, idioma ou número de árbitros;
  • Omissão quanto à repartição de custos ou à possibilidade de arbitragem de emergência.

Essas falhas podem comprometer a instalação do tribunal arbitral, abrir margem para litígios paralelos no Judiciário e gerar atrasos significativos na execução contratual. Em licitações, ainda podem levar à impugnação do edital ou até mesmo à sua anulação.

Além disso, cláusulas mal redigidas podem afetar diretamente a competitividade do certame. Licitantes experientes e financeiramente robustos tendem a avaliar os riscos contratuais de forma técnica — incluindo os riscos decorrentes de cláusulas arbitrais desequilibradas ou obscuras. Isso pode resultar na exclusão de concorrentes qualificados, na elevação dos preços ofertados ou mesmo na inviabilidade do projeto.

3. Arbitrabilidade objetiva convencional: o que pode — e o que não deve — ser excluído da arbitragem

A arbitragem no setor público só pode envolver direitos patrimoniais disponíveis, conforme previsto na Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996) e reafirmado pela jurisprudência do STJ. Contudo, mesmo dentro desse limite, é possível delimitar contratualmente o escopo da arbitragem — o que a doutrina denomina “arbitrabilidade objetiva convencional”.

Assim, as partes podem pactuar que apenas certos tipos de litígios serão submetidos ao juízo arbitral. Por exemplo, é comum que apenas disputas relacionadas a reequilíbrio econômico-financeiro, medições e inadimplemento contratual sejam arbitráveis, enquanto penalidades administrativas ou discussões sobre validade do edital sejam reservadas ao Judiciário.

Essa delimitação é legítima, mas exige critério técnico e motivação adequada. Se for feita de forma genérica ou excessivamente restritiva, a cláusula compromissória pode se tornar disfuncional — e até ineficaz. Fragmentar indevidamente o controle jurisdicional dos litígios gera insegurança, custos e insegurança contratual.

4. Elementos essenciais na redação da cláusula compromissória em contratos públicos

Ao redigir ou revisar uma cláusula compromissória em licitação pública, é recomendável observar os seguintes aspectos:

  • Escolha entre arbitragem institucional e ad hoc: a arbitragem institucional é geralmente preferível, pois assegura regras procedimentais e suporte administrativo. A arbitragem ad hoc, por sua vez, exige maior maturidade entre as partes e pode ser arriscada se não regulada com precisão.
  • Credenciamento da câmara arbitral: muitos estados e municípios exigem que as câmaras sejam previamente habilitadas. A escolha de uma instituição não credenciada pode gerar nulidades ou impugnações.
  • Divisão de custas e adiantamentos: é essencial prever como serão rateadas as despesas arbitrais e quem será responsável pelos pagamentos iniciais. O silêncio pode prejudicar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato ou paralisar o processo.
  • Arbitragem de emergência: convém prever expressamente a possibilidade de adoção desse mecanismo, útil para obtenção de medidas urgentes antes da instalação do tribunal arbitral.
  • Medidas judiciais de apoio: a cláusula deve esclarecer a possibilidade de o Judiciário conceder tutelas provisórias, homologar cartas arbitrais e auxiliar na produção de provas.
  • Confidencialidade e sucumbência: embora o sigilo seja uma característica da arbitragem, sua aplicação em contratos administrativos deve ser compatibilizada com o princípio da publicidade. Também é recomendável prever o tratamento das verbas sucumbenciais de forma equitativa entre os advogados públicos e privados.
  • Previsão orçamentária: o custo da arbitragem deve ser considerado no planejamento da contratação pública. O edital deve estar respaldado por estudo técnico que justifique a escolha pela arbitragem e preveja seus custos potenciais.

5. O papel dos licitantes no controle e na estabilização da cláusula compromissória

Mesmo sendo redigida unilateralmente pela Administração, a cláusula compromissória não é imune a críticas e ajustes. A fase externa da licitação — que vai desde a publicação do edital até a homologação — é o momento adequado para que os licitantes exerçam seu direito de controle.

Isso pode se dar por meio de:

  • Pedidos de esclarecimento ao órgão licitante;
  • Impugnações ao edital por irregularidades jurídicas;
  • Representações a órgãos de controle (como tribunais de contas);
  • Mandados de segurança ou outras ações judiciais.

Essa atuação não representa mera resistência à arbitragem, mas sim a busca por um modelo contratual mais eficiente, transparente e juridicamente seguro. Inclusive, muitas cláusulas são copiadas de projetos padronizados (como os elaborados por PMIs, BNDES, CEF ou agências reguladoras), o que exige atenção redobrada para evitar inadequações ao contexto local.

Após a assinatura do contrato, a convenção arbitral passa a gozar de presunção de validade e eficácia. Questionamentos posteriores, sobretudo diante de litígios materiais, costumam ser recebidos com ceticismo. Por isso, o momento de discutir, revisar e aperfeiçoar a cláusula é antes da adjudicação.

6. Conclusão: arbitragem com técnica, equilíbrio e controle

A cláusula compromissória não é uma formalidade qualquer. Ela estrutura a forma como os conflitos contratuais serão resolvidos e impacta diretamente a viabilidade do projeto, a atratividade da licitação e a segurança da execução contratual.

Redigir cláusulas arbitrais em contratos públicos exige conhecimento técnico, sensibilidade institucional e abertura ao diálogo com os licitantes. Da mesma forma, é papel dos particulares — com apoio jurídico especializado — monitorar os riscos envolvidos e participar ativamente da construção de um ambiente contratual mais equilibrado e eficiente.

No âmbito da advocacia preventiva, o exame prévio dessas cláusulas, ainda na fase de habilitação e proposta, pode evitar prejuízos significativos e garantir maior previsibilidade ao longo da execução contratual. E, no contencioso, o conhecimento das fragilidades estruturais da convenção pode ser determinante para a adoção da estratégia processual mais eficaz — seja para sustentar a jurisdição arbitral, seja para afastá-la.

A arbitragem, quando bem desenhada, é uma ferramenta poderosa para o aprimoramento da Administração Pública. Mas, como todo instrumento, depende de técnica, prudência e controle para cumprir seu papel com justiça e eficácia.