Resolução CFM nº 2.448/2025: defesa do paciente e da autonomia médica face aos planos de saúde

por | 05/11/25

João Guilherme Duda. Advogado, Economista, Mestre em Políticas Públicas.

1. Um marco regulatório para o equilíbrio entre autonomia e auditoria

O Conselho Federal de Medicina editou, em outubro de 2025, a Resolução CFM nº 2.448/2025, que redefine profundamente o conceito e os limites da auditoria médica no Brasil.
O texto substitui a antiga Resolução nº 1.614/2001 e estabelece, com maior densidade normativa, os deveres e vedações dos médicos auditores, assistentes e diretores técnicos de operadoras de planos de saúde.

Mais do que um simples ato administrativo, a norma surge como instrumento de proteção à autonomia profissional do médico e ao direito do paciente ao tratamento mais adequado, mesmo quando o procedimento não consta do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).


2. Proteção direta aos pacientes que buscam tratamentos fora do Rol da ANS

A resolução fortalece juridicamente as teses invocadas por pacientes em ações judiciais que visam obter tratamentos inovadores ou ainda não incorporados pela ANS, ao reconhecer que:

  • A auditoria médica é ato privativo de médico (art. 2º), que deve respeitar a autonomia do profissional assistente (art. 3º);
  • O auditor não pode interferir ou modificar condutas terapêuticas quando estas estiverem baseadas em evidências científicas ou diretrizes reconhecidas (art. 12, I);
  • É vedado utilizar programas de acreditação, manuais internos ou critérios administrativos como justificativa para negar cobertura de procedimentos, medicamentos, órteses ou próteses (art. 6º);
  • E toda auditoria deve envolver contato direto e documentado entre o médico auditor e o médico assistente, vedada a intermediação de terceiros (art. 5º).

Essas previsões ampliam o campo de argumentação jurídica em favor do paciente, pois reforçam que a negativa de cobertura baseada apenas na ausência de previsão no Rol da ANS afronta não apenas o Código de Defesa do Consumidor, mas também o próprio padrão ético-profissional estabelecido pelo CFM.

Em juízo, isso significa que o parecer médico assistente — pautado em evidências e na ciência médica — tende a prevalecer sobre decisões administrativas e pareceres padronizados de auditoria, cuja autonomia técnica agora encontra limites expressos.


3. Blindagem ética para o médico que prescreve terapias avançadas

A Resolução nº 2.448/2025 também protege o médico assistente contra a crescente prática de representações ético-profissionais promovidas por operadoras de saúde, geralmente motivadas pela indicação de terapias consideradas “não incorporadas” ou “fora do Rol”.

O art. 13 da norma reconhece como direito do médico estabelecer a melhor conduta ao paciente, desde que respaldada em evidências científicas ou protocolos reconhecidos.
Simultaneamente, o art. 12, I, proíbe expressamente ao auditor impor técnicas ou materiais distintos por razões administrativas, reafirmando o valor jurídico da autonomia médica como princípio ético e científico.

Na prática, o texto impede que a prescrição de tratamentos inovadores seja confundida com infração ética, desde que baseada em conhecimento técnico legítimo. Assim, o médico passa a dispor de um fundamento normativo sólido para contestar, perante os Conselhos Regionais de Medicina, representações movidas por operadoras inconformadas com sua conduta assistencial.


4. Riscos ético-profissionais para médicos que atuam em favor das operadoras

Por outro lado, a norma acentua os riscos para médicos que prestam suporte técnico às operadoras ou que emitem pareceres contrários à cobertura de procedimentos sem observância das garantias éticas da auditoria.

O art. 4º da resolução impõe requisito categórico:

“Em caso de divergência insuperável de diagnóstico e/ou indicação de procedimento, terapêutica ou procedimento realizado, é obrigatório ao médico auditor realizar exame presencial do paciente.”

Ou seja, é vedada a auditoria médica remota.
A ausência de exame pessoal e o uso exclusivo de prontuários ou exames complementares tornam o parecer irregular e eticamente nulo. Essa disposição tem impacto direto sobre:

  1. Médicos auditores de operadoras e seguradoras, que muitas vezes emitem pareceres sem contato com o paciente, limitando-se a revisar relatórios ou protocolos internos.
  2. Consultores e pareceristas vinculados ao NatJus (Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário), cujas manifestações frequentemente subsidiam decisões judiciais sobre tratamentos fora do Rol, sem exame direto do paciente nem diálogo técnico com o médico assistente.

Nessas situações, os profissionais assumem risco ético e técnico relevante, pois a Resolução 2.448/2025 deixa claro que o parecer médico sem avaliação presencial não configura auditoria válida e pode violar o Código de Ética Médica, especialmente os deveres de diligência, prudência e respeito à autonomia do paciente e do colega assistente.

Além disso, o art. 11, III, da norma determina que indícios de infração ética observados na prestação de serviços devem ser comunicados ao diretor técnico e, se necessário, ao Conselho Regional, o que abre espaço para responsabilização de auditores que contribuam para indevidas negativas de cobertura.


5. A força normativa da resolução na judicialização da saúde

A Resolução nº 2.448/2025 passa a funcionar como referência normativa tanto para o Poder Judiciário quanto para o controle ético-profissional das condutas médicas.
Nos tribunais, seu conteúdo tende a ser invocado como critério técnico de regularidade das auditorias realizadas por operadoras e dos pareceres contrários emitidos sem observância dos requisitos éticos e científicos.

Isso significa que pareceres administrativos ou do NatJus que desconsiderem a necessidade de exame pessoal, a autonomia médica e a evidência científica — limitando-se a uma leitura restritiva do Rol da ANS — perdem peso probatório, enquanto as recomendações do médico assistente ganham maior autoridade técnica e ética.

Em síntese, a Resolução nº 2.448/2025 recentraliza a decisão terapêutica no médico assistente, valoriza a medicina baseada em evidências e delimita a atuação dos auditores, impedindo que interesses comerciais ou administrativos se sobreponham à ciência e ao cuidado do paciente.


6. Conclusão

A nova resolução do CFM representa um avanço civilizatório na regulação da prática médica, especialmente diante da judicialização crescente da saúde suplementar.
Ela protege o paciente, ampara o médico assistente e impõe responsabilidade técnica aos auditores e pareceristas, delimitando o espaço legítimo de cada ator no processo decisório sobre tratamentos e coberturas.

Ao estabelecer que nenhuma decisão médica pode ser substituída por um parecer remoto ou administrativo, o Conselho Federal de Medicina reafirma o princípio de que a saúde do paciente é — e deve continuar sendo — o centro da medicina.