Sobre a revisão dos contratos de venda antecipada de soja

por | 18/03/21

Caio Romani – Acadêmico de Direito da UFPR

João Guilherme Duda – Advogado, Economista, Mestre em Políticas Públicas pela UFPR 

  1. A controvérsia

A acentuada variação dos preços da soja no contexto de uma mesma safra, associada à tradição forense brasileira de revisões contratuais, sinaliza um incentivo ao descumprimento dos chamados contratos futuros de soja. 

Nesses contratos o produtor recebe antecipadamente determinado preço pelos grãos que irá entregar na colheita. Quando os preços (e/ou custos de produção) se elevam substancialmente entre o recebimento antecipado e o momento da entrega, o produtor percebe uma perda da oportunidade, comparando o valor que receberia caso tivesse antes buscado outros meios de financiamento, deixando para vender o produto nos preços (maiores) disponíveis no segundo momento. 

A essa realidade econômico-financeira conjuga-se a tradição jurídica brasileira de revisão de contratos privados em virtude de “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis” (onerosidade excessiva) ou de cláusulas gerais de função social do contrato e boa-fé objetiva. 

Como resultado, há uma significativa litigiosidade e judicialização em torno desses contratos, justificando estas considerações. Iremos descrever a racionalidade econômica dessas relações jurídicas, a fim de identificarmos as finalidades e vontades que configuram tais negócios, como meio de sua interpretação (conforme artigos 112 e 113 do Código Civil) e solução de controvérsias.

  1. Conjuntura econômica e comportamento das partes

A “venda na baixa” cria um incentivo a que o produtor não entregue o produto (descumpra o contrato) para vendê-lo, a maior preço, no mercado à vista. A expectativa é de que, por meio de acordo ou decisão judicial, os custos do seu inadimplemento (multas, indenizações, reputação, despesas judiciais, honorários etc) sejam inferiores ao diferencial de preço usufruído – além de que sejam tais custos incorridos em momento posterior. 

O fundamento jurídico que daria legitimidade ao inadimplemento seria de “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis” (art. 478 do Código Civil) correspondentes à pandemia de COVID-19 enquanto suposta causa do aumento expressivo no preço da commodity

  Apenas como exemplo, a soja disponibilizada em Paranaguá em março de 2021 tinha seu preço em torno de R$ 170,00 a saca, enquanto há cerca de um ano atrás, na colheita anterior, o preço girava em torno de R$ 100,00¹. Isto é, entre a formação de expectativas de preço e a execução contratual um acréscimo de 70%. Mesmo em dólar e no mercado financeiro houve movimento similar. Entre maio de 2020 e março de 2021 o preço futuro da soja nos EUA subiu 68,33%, de cerca de 840 para 1400 dólares por bushel².

Há um argumento de aumento de custos também. A variação cambial em tese possui forte correlação com insumos importados e derivados de petróleo aplicados à produção, tais como diesel, fertilizantes e defensivos. De um modo geral a inflação brasileira de preços de atacado foi muito significativa durante a safra de 2020/2021, com o IPA-FGV (que mede a variação de custos de produção agrícola e industrial em geral) acumulando 41,78% entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021.

Contudo, sendo o risco, e não apenas a antecipação de capital, da essência desse negócio, o inadimplemento e a judicialização de tais contratos é uma opção de elevado risco e provável improcedência, como veremos, a par da jurisprudência e das possíveis consequências práticas do litígio. 

  1. Livre alocação contratual de riscos pelas partes

Tais contratos servem aos propósitos de: (a) financiar a produção (antecipação do recebível futuro); e (b) mitigar os riscos de mercado do produtor, pois o preço também pode cair entre o recebimento antecipado do preço e a entrega do grão. 

Diante disso, há um negócio agrícola que não se beneficia de nenhum regime jurídico que afaste a presunção de paridade das partes, expressa no art. 421-A, do Código Civil. Isto é, o produtor não se coloca em juízo, em caso de revisão, em posição análoga ao consumidor ou ao reclamante trabalhista, por exemplo. Nesse sentido, aspectos subjetivos de formação e expressão da vontade contratual (hipossuficiência ou vícios volitivos) possuem um prognóstico bastante negativo em juízo, isto é, ou demandam um ônus probatório subjetivo insuportável ou demandam uma hermenêutica de especial leniência com o produtor rural. 

No aspecto objetivo, dos fatos ocorridos durante a relação, a revisão costuma se fundamentar no art. 478 do Código Civil. A hipótese legal é de extrema onerosidade a uma parte e vantagem a outra, em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Para tal hipótese a lei estabelece a possibilidade de resolução do contrato ou, por proposta do réu, de sua modificação em atenuação desse desequilíbrio. Não raro se pede a decretação judicial da modificação do teor das cláusulas, isto é, a sua revisão judicial. O raciocínio seria que da possibilidade de resolução deduz-se ilegalidade das cláusulas em seu teor original. A revisão (substituição da vontade das partes pela do juízo) foi fortemente restringida pelo novo artigo 421-A, III, do Código Civil. 

Nos seus incisos I e II, o mesmo dispositivo enfatiza que as hipóteses de revisão em razão de imprevistos devem estar prescritas no próprio contrato e que a alocação de riscos feita pela parte deve ser respeitada. O contrato de venda antecipada é basicamente um contrato de alocação de risco de variação de preços de mercado. 

De modo algum isso é, para contratos de venda a preços presentes para entrega futura, uma novidade introduzida pela Lei da Liberdade Econômica. A sua regulação enquanto contratos aleatórios (artigos 458-461) traz longa tradição jurídica de respeito à alocação de riscos feita pela parte. A exceção é apenas quando uma das partes já conhece a consumação do risco. Isto é, quando não há uma alocação de risco, mas um ardil. Novamente, no campo prático processual, a ação atrai para si um complexo ônus de prova, de que o comprador conhecia de antemão o preço futuro, ao menos de modo aproximado. 

Por isso, a teoria da imprevisibilidade não é, geralmente, aplicada em contratos aleatórios.

  1. Riscos, ônus e vantagens: contratos derivados do contrato em discussão

Na formação da vontade no negócio jurídico, a razão impõe supor que o bonus pater familias irá assumir mais risco em troca de uma expectativa de maior rentabilidade ou abrirá mão de parte da rentabilidade esperada em troca de reduzir os riscos a que está exposto em suas atividades. Tanto o produtor quanto o comprador dimensionam o risco que estão dispostos a correr, proporcionalmente à rentabilidade almejada. 

Já vimos que o produtor, além de se financiar (ao receber antes) visa a reduzir o risco de o preço cair. O comprador (trader), ao pagar antecipado, busca, além de se resguardar do risco de o preço subir, também anular o risco de ter dificuldades de obter o produto, caso muitos produtores já tenham optado por vendas antecipadas. 

Ocorre que o comprador (trader ou final) não necessariamente consome essa soja no sentido mais estrito possível (não se alimenta dela pessoalmente). Ele irá ou cumprir com compromissos de revender em atacado o produto (ao reunir a produção de diversos agricultores) ou irá utilizá-lo como insumo de sua produção (por exemplo, se farelo, óleo ou rações). 

Ou seja, o risco que o comprador quer anular ou mitigar é o do inadimplemento dos seus contratos nos elos seguintes da cadeia produtiva do complexo soja – o que inclui instrumentos financeiros existentes nesse mercado para essa específica finalidade de alocação de riscos de variação de preços. 

O que é mais comumente observado nesse mercado, portanto, é que o comprador não se beneficia integralmente do fato de ter comprado soja a um preço menor do que o vigente no momento do seu consumo ou revenda, porque ele próprio já possui compromissos, físicos ou de derivativos financeiros, que assumiu em momento anterior, isto é, de entregar a algo (soja, contratos ou derivados) a preços ou custos menores do que os atuais³. 

Ou seja, não há uma anulação de riscos entre produtor, revendedor e o mercado em geral, mas uma complexa alocação de riscos em cadeia, no sentido de sua mitigação.

A revisão de contratos quebra todas essas expectativas, ensejando uma cadeia de prejuízos de comprovação relativamente simples, expondo o produtor inadimplente a um risco de arcar com cláusulas penais (não compensatórias) e indenizações que podem ser múltiplos de sua própria operação. 

Assim, como há a possibilidade e, não raro, a realidade de “trava de posições” por meio de relações contratuais com terceiros, a venda antecipada em regra não significa rentabilidade e prejuízos extraordinários, seja em sentido de previsibilidade, seja em sentido de intensidade. 4

Quem acaba por receber a rentabilidade (ou prejuízo) fora do normal nessa negociação é aquela parte que, correndo o risco (especulando), negocia a commodity, seja no campo, seja na bolsa, sem “travas”, isto é, sem um contrato no qual ganhe no mesmo cenário de preços em que perde no contrato de sua atividade principal.  

Por isso, a mera variação de preços, por mais imprevista e aguda que seja, não significa, por si só, hipótese legal onerosidade excessiva nos contratos de venda antecipada de soja.

A jurisprudência já consolidada do STJ é no sentido de que não há possibilidade da aplicação da teoria da imprevisibilidade pela alta da cotação do dólar e do preço da commodity.5 Apesar de que os julgados não tenham ocorrido conforme rito de uniformização de jurisprudência, os tribunais estaduais têm seguido o entendimento já sedimentado. 6

Tal análise é determinante para a decisão de eventual judicialização do litígio, visto que, normalmente, pedem-se tutelas antecipadas para a suspensão do contrato, a fim de que não incidam as penalidades contratuais durante a lide de revisão. Ocorre que, sem a constatação da probabilidade do direito, as tutelas antecipadas em caráter liminar não são concedidas, de modo que os produtores podem ter de arcar tanto com os ônus e penalidades contratuais, quanto com os ônus processuais. 

 Em síntese, são ações recomendáveis apenas a casos muito específicos, dotados de muitas provas e suficiente apoio técnico econômico. 

A situação se mostra ainda menos favorável diante do dever do aplicador da lei de considerar as consequências da sua decisão. O art. 20, da LINDB, introduzido em 2018, estabelece uma ordem pragmática ao poder judiciário: a análise das consequências das decisões.7 Nesse sentido, “o principal problema que o dispositivo quer resolver se encontra na aplicação acrítica e superficial de princípios normativos menos densificados”; 8 exatamente o caso da função social do contrato e teoria da imprevisão, que fundamentam as teses de revisão contratual. 

Ou seja, para aplicar a teoria da imprevisão e o princípio da função social do contrato, o juiz deve considerar as consequências da sua decisão, fundamentando-a de acordo com essa ponderação. E, considerando os contratos de venda antecipada de soja, decidir pela sua revisão poderia causar prejuízo exatamente a quem se esperava proteger. Essa foi a conclusão do estudo feito por Resende e Zylbersztajn (2011). 9 Os autores, analisando o cenário no Estado de Goiás após demandas de revisão contratual pela alta da soja, perceberam que houve aumento da exigência de garantias para contratos de venda antecipada, bem como a diminuição dessa modalidade de contrato, o que acaba por aumentar a onerosidade e diminuir a previsibilidade para o produtor.

Porém, em que pesem as considerações acima, o produtor que se sente lesado não deve ficar desamparado. É verdade que cada caso é um caso; daí a necessidade de suporte jurídico especializado, capaz de estabelecer as distinções entre o caso e a jurisprudência sedimentada, bem como evidenciar a onerosidade excessiva a ser mitigada.

Dessa forma, propõe-se a observação de dois pontos essenciais para a formação de um caso que se afaste da jurisprudência já formada:

  1. Os agentes econômicos envolvidos: a observação dos agentes econômicos presentes na negociação da venda antecipada é importante para se verificar, por ângulo subjetivo, o quão agudo e imprevisível foi o desequilíbrio. Para um pequeno produtor, é possível, com boa prova, demonstrar que houve prejuízo excepcional por desconhecer acesso a hedge, pelas circunstâncias da venda antecipada, sendo verossímil que de fato enfrentou extraordinário prejuízo que não sabia como prevenir. Na outra ponta, também com boas provas, teria que ser demonstrado o perfil “especulador”, ao qual a revisão contratual não desencadeia prejuízos derivados, e para o qual a operação de fato traz ganhos extraordinários a partir de uma assimetria de informações a respeito do mercado.
  2. Distinguishing: A jurisprudência sedimentada ocorreu dentro de um contexto em que havia alta demanda do mercado chinês, mas houve quebra de produção nos EUA; consequentemente, o aumento do preço. O contexto atual é, a priori, distinto. A alta do preço se deu muito em função da pandemia de COVID-19, situação imprevista e que não se encaixa nos riscos e variações de mercado comuns da atividade. 10 Tal alegação, inclusive, já encontrou acolhimento em primeiro grau. 11

Uma estratégia processual de menor risco seria o adimplemento do contrato, antecedido de comunicação inequívoca do entendimento da ocorrência da onerosidade excessiva e da pretensão de revisão consensual ou judicial, seguida de ajuizamento ação com pedido restrito às perdas e danos do produtor, decorrentes da onerosidade excessiva. O depósito judicial como caução não elide o inadimplemento (e os riscos dele decorrentes), ao passo que o pagamento em juízo não faz sentido porque não há recusa no recebimento ou dúvida sobre a quem pagar. 

Por fim, aponta-se para as vantagens da solução pela via amigável. Ora, o cenário de crise mundial afeta a todos os agentes econômicos, que literalmente pagariam para não litigar e para que se mantivesse a estabilidade/segurança jurídica nos negócios. Soma-se a isso a crescente escassez do grão, tendendo à valorização de bons relacionamentos com produtores.

¹Disponível em: <https://www.cepea.esalq.usp.br/br/indicador/soja.aspx>. Acesso em 18.03.2021.

²Disponível em: <https://br.investing.com/commodities/us-soybeans-contracts>. Acesso em 18.03.2021.

3 Por exemplo (bastante simplificado), o trader que compra a 100 em 2020 e recebe a soja quando o preço de mercado é 170 e, ainda em 2020, por meio de outros contratos havia alocado o seu risco de a soja valer 60 no momento da colheita. Ele teria pagado 100 e teria que revender a 60. Em razão disso, costuma fazer hedge, mediante contratos de opção de venda de soja a 100. Se o preço cair, ele tem a opção de vender (obrigar terceiro a comprar) a preço mais alto e assim compensar seu prejuízo. Se o preço subir, ele perde o que investiu nesses contratos financeiro (pois não tem interesse em forçar que alguém compre de si abaixo de preço de mercado), mas ganho no mercado real (pois comprou soja por menos, antecipadamente). Os elos seguintes da cadeia tendem a se comportar de modo semelhante. Inclusive o próprio produtor pode ter, para compensar o risco de aumento do preço ao vender antecipado, adquirido opções de compra em torno de 100 reais, “apostando” na alta em bolsa para compensar as suas eventuais perdas, nesse cenário.

4 Com argumento similar, ver: TIMM, Luciano Benetti; YEUNG, Luciana. Contratos futuros de soja: qual sua lógica econômico-jurídica?. Jota. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-da-abde/contratos-futuros-de-soja-22022021>. Acesso em 10.03.21.

5  Nesse sentido, STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 784.056/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 15/9/2016; STJ, REsp 849.228/GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 12/8/2010; STJ, RESP 803.481/GO, 3ª Turma, Min. Nancy Andrighi, j. 1º/8/2007.

6 Recentemente, TJSC, apelação nº 0000554- 36.2008.8.24.0025, Rel. Janice Goulart Garcia Ubialli, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 6/8/2019; TJSC, apelação nº 0300305-84.2016.8.24.0072, Rel. Des. Janice Goulart Garcia Ubialli, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 10/12/2019.

7  Nesse sentido, os enunciados números 3 e 4 do II Fórum Nacional da Concorrência e da Regulação da AJUFE, Campinas, 2018: 3. “O Poder Judiciário deve deferir tutelas que restabeleçam a juridicidade violada com o menor grau de impacto interventivo possível, também atentando para as consequências políticas, econômicas e concorrenciais de suas decisões”. 4. “O Poder Judiciário deve primar pelo controle de juridicidade empiricamente informado, incentivando as partes e terceiros interessados a apresentarem dados técnicos e científicos que subsidiem a verificação lógica entre as premissas, as metodologias e as conclusões que embasam os atos regulatórios”

8 DIDIER, Fredie Souza; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Dever judicial de considerar as consequências práticas da decisão: interpretando o art. 20 da Lei de Intro- dução às Normas do Direito Brasileiro. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 19, n. 75, p. 143-160, jan./mar. 2019.

9  REZENDE, Christiane Leles  and  ZYLBERSZTAJN, Decio. Quebras contratuais e dispersão de sentenças. Rev. direito GV [online]. 2011, vol.7, n.1

10 Há que se considerar, por outro lado, que na racionalidade econométrica há o cuidado em separar coincidência de correlação e a correlação da causalidade.  Incontroverso que a a alta do preço da soja se deu no contexto da pandemia, mas a comprovação de que esta é a variável explanatória daquela depende de estudos mais aprofundados do ponto de vista estatístico e de uma hipótese teórica que seja lógica, isto é, por que a pandemia afetaria os preços, ou por quais mecanismos.

11 Autos nº 5001941-87.2020.8.24.0022, da 1ª Vara Cível de Curitibanos, Estado de Santa Catarina.