Gabriel Cordeiro de Sales – Advogado, mestrando em ciências jurídico-econômicas pela Universidade de Lisboa
João Guilherme Duda – Advogado, Economista, Mestre em Políticas Públicas pela UFPR
Os contratos firmados entre distribuidoras e postos de combustíveis, quando licenciado o uso da marca da distribuidora ao revendedor, contemplam cláusulas de exclusividade e volume (“litragem” ou “galonagem”) mínimo de aquisição durante a vigência contratual. São contratos de longo prazo e com cláusulas penais suficientes à aniquilação do negócio, reforçadas com garantias reais e pessoais dos sócios do posto revendedor.
Em contrapartida, os postos recebem o direito de caracterizar o estabelecimento com a marca das distribuidoras e recebem “bonificações antecipadas por desempenho”, espécie de “luvas”, com valores expressivos que costumam ser aplicados para implantar ou adequar o estabelecimento aos padrões da distribuidora. Também com essa finalidade, costuma haver o comodato de bens essenciais à atividade, tais como tanques, bombas e equipamentos de publicidade.
A previsão de exclusividade é coerente com a tutela do consumidor, no caso pela ANP, para que o combustível revendido de fato advenha da distribuidora identificada pela marca.
A bonificação inicial concedida pela distribuidora, o comodato de bens, e a possibilidade de explorar a sua marca e os seus produtos licenciados são fatores que indicam o equilíbrio inicial da relação contratual. Por outro lado, os preços praticados pelas distribuidoras face ao revendedor, acima dos praticados junto a revendedores não vinculados a cláusulas de exclusividade (“bandeiras branca”), dependem de diversos fatores econômicos, e até políticos (no caso da maior distribuidora do país), que influenciam diretamente no equilíbrio econômico do contrato.
Ausente escolha pelo revendedor, o preço é ditado pela distribuidora, limitado apenas pelo risco de inviabilidade do ponto de revenda no qual investiu (mas protegida por cláusulas penais e garantias reais e pessoais). Assim, na prática, há o risco de a concorrência potencial entre dezenas de postos de dado mercado geográfico ser substituída pelo potencial concorrência (ou conluio) de apenas 3 grandes distribuidoras (operando as marcas Petrobrás, Ipiranga e Shell). Essa questão alcançou o noticiário pela Operação Margem Controlada, no Estado do Paraná. No entanto, centralizaremos a discussão apenas nos fatores de ordem econômica que independem de juízos de conduta.
O lucro da operação principal do posto de combustível será determinado pela diferença (margem) do preço adquirido pela distribuidora em relação ao preço repassado ao consumidor final. O aumento no preço dos combustíveis acima da inflação é uma constante no cenário econômico brasileiro. O aumento costuma estar associado à variação do petróleo, à desvalorização do real, à ausência de competição no mercado de refino e a aumentos de tributos, em especial estaduais. Isso inclusive vem deflagrando crises institucionais sérias e riscos de desabastecimento, como na greve dos caminhoneiros, em 2018.
Naquela ocasião, observou-se que a demanda por combustíveis era inelástica. Ou seja, a um aumento importante de preços corresponde uma queda pouco significativa da demanda. Em palavras mais simples, dada a essencialidade do produto, o consumidor parece pouco se importar (em sua decisão) com o aumento do preço na bomba, pouco alterando seus hábitos. Os consumidores sacrificam outros custos e consumos, pois as famílias e as empresas precisam mover bens e pessoas para produzir, viver, conviver e sobreviver.
Seria mais um, dentre outros tantos, ônus que as estruturas econômicas brasileiras concentradas conseguem repassar integralmente ao universo de consumidores, sem reflexos significativos nos contratos entre postos revendedores e distribuidoras.
Em 2021, o Brasil passa a experimentar um novo aumento expressivo e súbito no preço dos combustíveis, em contexto de desvalorização cambial e valorização do petróleo, mantido o quase-monopólio estatal de fato no refino de derivados de petróleo. No dia 08/03/2021, a Petrobrás anunciou o sexto aumento consecutivo no preço dos combustíveis somente nesse ano, com preços da gasolina na casa de R$ 6,00 o litro ao consumidor final, em várias localidades.
A diferença em relação ao que aconteceu em 2018 é o momento da pandemia do Covid-19 e as políticas públicas de restrição de liberdades em nome do combate ao vírus. A sociedade experimenta uma mudança radical que transformou o modo de vida, com impactos nos hábitos de consumo. Pessoas trabalham em casa e crianças estudam pelo computador. As viagens de lazer são mais raras. E as saídas de casa e passeios se resumiram ao “essencial”. Como resultado, as pessoas passaram a usar menos os seus veículos e, por consequência, consomem menos combustível. Em síntese, com uma percepção diferenciada da essencialidade dos veículos automotores, somada ao arrefecimento em geral das atividades econômicas das empresas, a curva de demanda por combustíveis no varejo se alterou. Agora ela passa a ser mais elástica, isto é, para um determinado aumento passa a corresponder uma queda mais significativa da demanda. Além da maior elasticidade, há o chamado deslocamento (recuo) da curva de demanda. Mesmo mantido o preço, a demanda cai. Vejamos num exemplo hipotético de uma cidade em “bandeira preta”.
A queda na demanda por combustíveis, por sua vez, impacta diretamente na equação do contrato entre postos e distribuidoras que preveem cláusulas de exclusividade e litragem mínima. As condições econômicas iniciais do contrato não mais se verificam e colocam os postos combustíveis em posição desfavorável. Afinal, o preço de aquisição sobe vertiginosamente enquanto a demanda pelos consumidores finais diminui por conta do cenário pandêmico.
A questão passa a ser os custos fixos da unidade revendedora. A margem bruta de vendas (diferença total entre o que gasta para adquirir combustível e as receitas totais de vendas) passa a não cobrir seus custos (locação, mão-de-obra, IPTU, seguros, administração, taxas de poder de polícia, segurança) não relacionados ao volume vendido. A distribuidora não passa pelo mesmo problema, pois seus custos fixos são diluídos em volume de receitas proporcionalmente muito maior (por atuarem em atacado). Além disso, a curva de demanda será ainda mais elástica na revenda do que na distribuição: um posto compete com muitos mais postos do que distribuidoras com distribuidoras, competição que inexiste quando há a exclusividade.
Para tentar cobrir seus custos fixos, o revendedor vai ao limite de sua margem, isto é, revendendo ao menor preço possível, a fim de manter seu volume de vendas (inclusive sob a ameaça das pesadas multas relativas ao volume mínimo de vendas) diante da demanda desaquecida e sensível a preços. Já o distribuidor sabe que o revendedor não tem escolha, com um sacrifício de margem, se existente, muito menor, apenas para não liquidar o ponto de venda de vez. E ainda há situações em que pode ser de interesse estratégico da distribuidora o fracasso de determinado revendedor para que se aproprie das sanções contratuais e faça a intermediação daquele posto para uma rede de postos de sua preferência. Uma rede de postos significa, para a distribuidora, postos mais eficientes, com mais custos administrativos diluídos, isto é, mais margem para ela poder apropriar.
Quando isso ocorre é caso de onerosidade excessiva em relação contratual continuada, definida pelo art. 478 do Código Civil como a situação em que: “a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”. O dispositivo prevê a possibilidade de resolução do contrato a pedido do devedor nesse caso. O desequilíbrio contratual por onerosidade excessiva na maior parte das vezes não é consensual e se tornam de objeto de litígio perante o Poder Judiciário.
No caso dos contratos de compra e venda de combustível, o interesse das distribuidoras encontra amparo na possibilidade de incidir as astronômicas cláusulas penais em caso de descumprimento. Isto é, ao contrário de muitos outros casos de onerosidade excessiva, a hipótese de “extrema vantagem” não reside na prestação contratual, mas em suas cláusulas penais extremamente abusivas e bem garantidas, incidentes diante da inviabilidade de venda dos volumes mínimos.
Nesse cenário, os postos de combustíveis passaram a ingressar com ações judiciais com pedidos liminares que permitam a sobrevivência de alguns estabelecimentos. As estratégias variam desde a resolução do contrato, conforme o art. 478. Ou, então, a modificação (revisão) de algumas cláusulas, sendo as principais a de exclusividade (o que implica em descaracterização do posto, para que não se venda sob a mesma marca produto de qualquer distribuidor), ou, a redação ou afastamento das cláusulas penais previstas em caso de descumprimento das litragens mínimas.
O remédio judicial se tornou essencial para a sobrevivência de alguns postos de combustíveis (e patrimônios de seus sócios dados em garantia) que se encontram incapazes de competir com concorrentes que adquirem combustível a preços livres de cláusulas de exclusividade. A resolução, a suspensão parcial de eficácia de algumas de suas disposições, ou a modificação do contrato, quando obtida em decisão judicial de urgência, permite que os postos prejudicados busquem as melhores condições praticadas no mercado e consigam reduzir os prejuízos causados pela somatória do aumento do preço dos combustíveis e a queda da demanda em virtude da pandemia do Covid-19.
O direito concorrencial deve se fazer presente, pois a afirmação de que devem ser respeitados porque decorreriam da vontade livre das partes não resiste à realidade de uma estrutura de mercado concentrada.