O testamento em tempos de pandemia: a prevenção vai além do uso de máscaras e álcool gel.

por | 13/04/20

A pandemia global do Covid-19 trouxe uma sensação de medo geral pela possibilidade de contágio e morte pela nova doença. A onda negativa desse pânico é notória, afetando drasticamente as relações sociais, familiares e comerciais. Contudo, sempre é possível extrair algo de positivo nisso tudo. Mais do que nunca, a doença estimula a sociedade a pensar maneiras de prevenção tanto em relação à doença quanto aos possíveis resultados trágicos da desordem social e econômica que vivemos. 

Nesses tempos de incerteza, a prevenção não passa apenas pelo uso de álcool e isolamento social. O ditado popular de autoria do ex-presidente americano Benjamin Franklin nos revela uma dura verdade: nada é mais certo neste mundo do que a morte e os impostos. E, ainda mais duro, é que os impostos se fazem presente também em decorrência da morte. Então, se não é possível nos livrarmos do que o ex-presidente americano chamava de “certeza”, pelo menos é possível – e necessário – estarmos prevenidos para a sua inevitável chegada. 

O medo da pandemia do coronavírus estimulou alguma reação da sociedade em termos de planejamento sucessório. De acordo com reportagem publicada na Gazeta do Povo no dia 23.03.20201, a doença foi responsável pelo aumento de aproximadamente 70% o número de testamentos registrados nos cartórios paranaenses. Porém, a pressa na elaboração desses documentos pode ser causa de diversas nulidades ainda mais prejudiciais do que a própria doença. 

O testamento, muito provavelmente, é a forma mais amplamente conhecida de planejamento sucessório. É popularmente conhecido como a última manifestação de vontade daquele que irá falecer, sendo a sua principal função a estabelecer regras para a distribuição do patrimônio do testador após a sua morte. Trata-se de meio simples que permite a exclusão ou inclusão de herdeiros da parte legítima e pode ser feita em escritura pública por um baixo custo. 

Contudo, há normas que regulam o testamento que são menos conhecidas do que a sua função geral. E aqui torna-se fundamental o assessoramento profissional com o fito de evitar eventuais nulidades no documento, o que poderá causar ainda mais dor de cabeça para os herdeiros.

De forma simplificada, sem a pretensão de esgotar o tema, ou, suscitar maiores debates acerca das normas abaixo expostas, passaremos por alguns aspectos que regulamentam as normas testamentárias e que devem ser cautelosamente observados para que o testamento seja válido e eficaz. 

A primeira, mais simples, diz respeito ao limite quantitativo do patrimônio que poderá ser disposto no testamento. Se o testador possuir herdeiros necessários (os descendentes, os ascendentes e o cônjuge) somente poderá dispor de metade do seu patrimônio (Art. 1.789, CC). Do contrário, poderá dispor livremente da integralidade do seu patrimônio. 

Ainda em relação aos critérios de distribuição da parte disposta em testamento, é necessário que o testador busque detalhar ao máximo a quota patrimonial destinada a cada legatário. Na ausência de discriminação da fração destinada para cada nomeado, a partilha será igual entre todos (art. 1904, CC). No mesmo sentido, também é preciso observar com cautela a coletivização dos herdeiros na redação do documento, observado que na ausência de detalhamento da divisão, a herança será dividida em tantas quotas quantos forem os indivíduos e os grupos designados (art. 1905, CC). Portanto, não é recomendável que se utilize de termos coletivos, por exemplo “os irmãos”, mas sim qualificar quem são os irmãos e a respectiva quota destinada para cada um deles. 

A segunda categoria de normas diz respeito aos instrumentos que podem ser utilizados para que a vontade do testador seja efetivada. As chamadas cláusulas restritivas consistem em fazer recair sobre os bens da legítima a qualidade de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade. 

Contudo, o Código Civil limita o uso dessas cláusulas. Somente é permitido ao testador adotar cláusulas restritivas quando motivadas com justa causa declaradas no documento (Art. 1848, CC). Outro efeito jurídico, também resultante dessas cláusulas, é que a inalienabilidade do bem, quando impostas por ato de liberalidade, também implica na sua impenhorabilidade e a incomunicabilidade (Art. 1911, CC). 

A terceira categoria de normas exigem alguns requisitos formais aos testamentos. Para além do testamento público – aquele lavrado em cartório – o ordenamento brasileiro também prevê a existência de outras duas formas ordinárias de disposição testamentária: o testamento cerrado e o testamento particular. Cada categoria possui suas próprias formalidades que estão descritas nos arts. 1862 a 1.880 do Código Civil.

Para os testamentos públicos e cerrados, muitos dos requisitos formais serão supridos pelo próprio tabelião ao confeccionar o documento. Portanto, também é importante a escolha de um bom Tabelionato de Notas, que cumpra com o rigor formal, evitando-se eventuais litígios em relação à validade do testamento por inobservância dos aspectos formais. De outro lado, o testamento particular, menos utilizado, possui maior complexidade nos aspectos formais, exigindo-se a subscrição de pelo menos três testemunhas e, após, a morte do testador a sua publicação em juízo e a citação dos herdeiros. 

Antigamente, para os testamentos particulares, era praxe que fosse realizado na presença de advogado para que o rigor formal fosse devidamente cumprido. Não é requisito obrigatório por lei, contudo, a contratação de profissional é importante para prevenir nulidades nas disposições testamentárias. 

Os vícios nas disposições testamentárias e que podem causar a nulidade de cláusulas, ou, do próprio documento em sua totalidade, estão previstas no Código Civil. São normas que dizem respeito à qualidade e qualificação dos legatários, além do valor fixado ao legado (Art. 1900, CC). Em síntese, trata-se de cumprir com os aspectos de direito material e rigor formal já tratados acima. 

Após o falecimento do testador, é o momento da abertura e cumprimento das disposições testamentárias. O documento produzido sem vício será determinante para a redução do potencial litigioso do testamento e o seu rápido cumprimento. 

Nesse momento, para qualquer espécie de testamento, será obrigatório iniciar o processo de inventário para regularizar a situação dos bens. A análise de validação do testamento dar-se-á por meio de ação judicial, conhecida como “Ação de Abertura, Cumprimento e Registro de Testamento”, onde será verificado eventual existência de vícios da cédula testamentária. Ou seja, a análise da sua validade é competência exclusiva do Poder Judiciário que irá sanear vícios ou excluir cláusulas nulas. Com o registro do testamento, o Juiz determinará o cumprimento das disposições testamentárias.

O art. 610 do Novo Código de Processo Civil dispõe que: “havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial”. Em rigor, a leitura do dispositivo exclui a possibilidade de inventário extrajudicial para os inventários que dependem do cumprimento das disposições testamentárias. Contudo, verifica-se na prática que a judicialização tem sido obrigatória somente em relação ao primeiro procedimento de abertura, registro e cumprimento. Ou seja, após registro do testamento, o inventário poderá ocorrer também na forma extrajudicial.

Para que seja realizado extrajudicialmente, também é necessário que os herdeiros sejam todos maiores e capazes. Como a redação do Código de Processo Civil ainda carrega dúvida quanto à possibilidade de inventário extrajudicial em havendo testamento, é recomendável que o advogado também formule pedido ao juízo para que se expressamente decida sobre a possibilidade de abertura do inventário por meio de escritura pública. Caso os herdeiros estejam todos de acordo, o inventário judicial se revelará um meio mais célere do que a via judicial. 

Finalmente, é chegada a hora dos impostos. Os testamentos não possuem grande potencial para prevenção da incidência de impostos após a partilha. Seja no caso de inventário judicial ou extrajudicial, incidirá o ITCMD (Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação). A alíquota deste tributo varia a cada Estado brasileiro. No Paraná, o imposto é de 4% sobre o valor dos bens transmitidos, porém, em outros Estado adotam-se alíquotas progressivas que podem chegar até 8%. 

Ainda que no Brasil o popular “imposto sobre a herança” seja menor do que em outros países como os Estados Unidos, Japão, França e Alemanha, a falta de dinheiro disponível para o pagamento do tributo não é algo raro. Imagine uma hipótese de um falecido que deixa apenas um antigo e valioso imóvel no valor em R$ 1.000.000,00 aos seus herdeiros, porém, sem deixar nenhum outro patrimônio. Não havendo previsão legal para dispensa do recolhimento deste imposto, no Estado do Paraná, os herdeiros teriam que arcar com R$ 40.000,00 em tributo para que a partilha fosse efetivada. 

Outras inúmeras formas de planejamento patrimonial, muitas delas envolvendo estruturas societárias, são adotadas pelos advogados e algumas delas poderão vir a ser por nós futuramente abordadas.

Em suma, o testamento é um excelente instrumento para o cumprimento da vontade do testador após o seu falecimento e, se corretamente produzido, possui potencial para evitar litígios entre herdeiros em um longo processo judicial. Para os casos dos testamentos, não deixe que o pânico e a pressa, causados pela pandemia global, se tornem inimigas da perfeição. É necessário tomar a devida cautela para evitar vícios e nulidades das cláusulas, o que poderá ser feito com assessoramento de profissional de confiança tanto na fase de elaboração do documento, quanto na fase de registro e cumprimento, momento em que a atuação do advogado é obrigatória. 

1 https://www.gazetadopovo.com.br/parana/cartorios-aumento-testamentos-coronavirus/