O momento impõe à Medicina um desafio agudo. Um vírus que não demorou 90 dias entre a sua revelação e o colapso de sistemas públicos, com impactos socioeconômicos comparáveis a grandes guerras. Nos esforços médicos emerge o debate em torno da adoção em larga escala de terapias com relatos de casos significativamente positivos, mas que não passaram pelos procedimentos regulamentares de registro e contam com escassa produção científica, pelo curto período de aplicação.
Isso não é novidade. Pelo contrário, a adaptação de drogas, técnicas e tecnologias já conhecidas a novos problemas é comum na Medicina. É da essência dela. É o que a diferencia, enquanto ciência aplicada, de ciências puras, como a bioquímica e a biologia. Essa diferenciação é a mesma pela qual engenheiros estudam física, mas físicos não são responsáveis por edificações. A Oncologia, apenas um exemplo, depara-se com frequência com o problema dos medicamentos off-label: diante da evolução da doença, com pouco a perder, o médico se vale de drogas com riscos razoavelmente conhecidos para aplicações diversas daquelas para as quais foi o princípio ativo originalmente pesquisado e registrado. Com a experiência acumulada, esses novos usos são agregados à bula, por meio da agência reguladora.
As inovações ocorrem muitas vezes a partir de critério compassivo (pouco a perder), mas quase sempre são pura e (complexa) Medicina: o médico associa estudo científico e experiência pessoal, razão pela qual jamais será substituído por robôs compiladores de metadados de artigos científicos – tampouco por profissionais ou pesquisadores de outras áreas da saúde.
Outro exemplo é o do câncer mais comum entre homens (próstata): enquanto as terapias focais de próstata (HIFU em especial) são quase onipresentes nos serviços uro-oncológicos de ponta, o horizonte de adoção em larga escala, por critérios de saúde coletiva, está muito distante. Nos grandes centros, a decisão ocorre sob medida ao paciente, por médicos chefes de serviço, não raramente com vinte anos de formação, ou mais (graduação, residências, mestrado, doutorado e assim por diante). No âmbito da saúde coletiva estatal (SUS) e dos planos de saúde (complementar), são necessários estudos e estatísticas mais exaustivos para que o sistema faça escolhas de custo-benefício e disponibilidade, padronize protocolos para profissionais menos experientes e até mesmo contemple a realidade da automedicação. O experimental de ontem é inovador hoje e obsoleto amanhã, em velocidade que a regulação não acompanha.
O prejuízo de terapias inovadoras, sejam as seguras e eficientes, adotadas por médicos com base em razoável literatura e vasta experiência, sejam as compassivas, fora de protocolos de pesquisa, não é do paciente, mas do público. Sem os protocolos de pesquisa, o paciente se beneficia (ou tem a chance), mas o seu caso é imprestável às estatísticas que iriam embasar o registro da terapia para uso geral, comercial, disponível no SUS ou obrigatório aos planos de saúde.
Nas democracias ocidentais (legado axiológico bíblico) não se exige, e raramente se incentiva, o sacrifício fatal individual em favor do bem coletivo (entende-se que o sacrifício máximo já foi feito e que cada vida humana é sagrada). O compromisso do médico é com o seu paciente – e nem sempre a estratégia de saúde coletiva se alinha às suas necessidades. Por isso, a nossa legislação, ao mesmo tempo, estabelece a regulação técnica (ANVISA/CFM) e técnico-econômica (ANS e SUS) da saúde, enquanto prestigia e garante a autonomia máxima da decisão médica (Lei do Ato Médico). A questão vai além de o paciente e o médico não poderem aguardar os acadêmicos e as autoridades, mas abrange temas delicados, como o médico ter que, em nome da Ciência, submeter paciente a placebo de terapia em que acredita, impondo-lhe o ônus de conviver com a decisão que, “a bem da ciência e da coletividade”, associa-se a um óbito concreto.
A falta de registro para adoção de terapias e drogas fora de protocolos de pesquisa (ANVISA), no SUS (Conitec), ou obrigatórios para todos os planos de saúde do país (ANS), não se confunde com certeza de perigo ou evidência de ineficácia. Sem prejuízos de pareceres que emite sob provocação (opiniões pontuais, provisórias e não vinculantes), em casos mais graves, o pleno do CFM é quem se pronuncia, por Resolução proibindo determinadas terapias. Por exemplo, foi o caso da chamada medicina ortomolecular e das terapias hormonais anti-envelhecimento, proibidas pela Resolução 1.999/2012. Essas proibições são excepcionais, aprovadas em plenário, sob forma de resolução, pois a premissa é a da liberdade (com consequente responsabilidade) do médico. Nesse dilema entre o que o médico crê ser melhor para o paciente e as estratégias coletivas e de longo prazo das autoridades reguladoras, deve prevalecer a autonomia por quem se responsabiliza, diante da iminência da morte, pela escolha: o profissional médico.
Tomada a decisão, sob a premissa de que a Medicina assume compromissos de meios, não de resultados, sobretudo em momentos agudos de risco de morte, advindo o óbito ou o dano no contexto de adoção de terapias inovadoras, ainda pode o profissional se socorrer, em sua defesa, com tranquilidade, de aspectos como custo-benefício, comorbidades, variáveis aleatórias ou desconhecidas pela ciência à época (apoiando-se inclusive no debate científico em si naquele momento). Basta que não tenha ocorrido dolo (vontade de prejudicar o paciente), negligência, imprudência ou imperícia (ignorância de conceitos básicos ou consensos bem estabelecidos e sem novas causas razoáveis de refutação). A sociedade sabe que precisa de médicos bem formados e dispostos a assumir riscos razoáveis em favor dos seus pacientes. E esta é, e deve ser, a premissa regulatória da Medicina e da sua ética profissional.
De outro lado, assim como o ato médico não se subordina de modo absoluto e irresistível a “consensos científicos” de órgãos reguladores, também não está o profissional autorizado a desvencilhar-se dos deveres éticos que protegem os direitos individuais do paciente em nome de causas científicas ou coletivas. Pondo como exemplo extremo, resgatando analogia com as famigeradas experiências de Josef Mengele, não seria ético, hipoteticamente, um profissional testar em pacientes dosagens sabidamente exacerbadas para desacreditar determinada terapia que lhe parece inconveniente, por razões subjetivas, políticas ou mesmo que crê altruístas. Estaria no campo do homicídio por dolo eventual.
No caso específico desta pandemia, as decisões e as responsabilidades são dos médicos. Governantes e técnicos reguladores e de outras áreas (biólogos, bioquímicos, biomédicos, etc.) certamente fazem parte de um esforço social coordenado, especialmente em aspectos coletivos e preventivos, mas, pela velocidade dos acontecimentos, as melhores fontes de informação e decisão são precisamente os chefes de serviços com um grande número de casos acumulados. Lá está o front da Medicina com o vírus e o que lá acontece demora um tempo de que nem sempre dispomos até a apresentação de fatos reais na formatação científica. Neste momento excepcional, o que os médicos prescreverem deve ser observado e presumido como correto. A análise de eventuais insucessos, no futuro, não pode nem perder de vista o contexto atual de urgências e incertezas, tampouco a prudência exigida quanto àquilo que já é sabidamente dotado de riscos injustificáveis.