Direitos individuais e difusos de consumidores ofendidos pela falsa propaganda de neutralidade de redes sociais

por | 30/01/23

Em 26 de março de 2018, um juiz da Califórnia extinguiu antecipadamente ação proposta por entidade de ensino à distância (Prager University, de viés conservador), cujos vídeos (em parte) foram banidos pelo Youtube. Segundo a decisão (https://www.documentcloud.org/documents/4421826-Prager-Dismissed.html, acesso em 25 de julho de 2018), o Youtube não seria um “fórum público”, mas uma empresa privada.

Sob ótica absolutamente privatista, o fundamento procede, inclusive em nosso ordenamento, vez que ninguém pode ser compelido a emprestar empreendimento privado à divulgação de ideias de terceiros. Caberia ao interessado, livremente, buscar outros meios de divulgação de suas ideias. Poderia a plataforma, também livremente, recusar-se a instrumentalizar a divulgação de ideias de que discordam os seus diretores ou controladores. Trata-se de aplicação do princípio da legalidade (CF, art. II).

Todavia, permitir que empresas fornecedoras de serviços de redes sociais censurem páginas contrárias à ideologia dos seus agentes pode não ser a solução válida quando, sob a ótica do Direito Consumidor, agrega-se o fato de que tais redes se propõem “neutras”.

Outro ingrediente é a realidade oligopolista deste mercado, com apenas 3 empresas relevantes na propriedade de redes sociais, duas delas (Google, dono do Youtube, e Facebook, dono também do Instagram e do Whats App) muito maiores que a terceira (Twitter).

O Facebook diz-se comprometido com a liberdade de expressão e com a diversidade (https://www.facebook.com/communitystandards/, acesso em 08 de abril de 2020). Destacamos da fonte primária: “Para garantir que todas as vozes sejam valorizadas, criamos com muito cuidado políticas incluindo diferentes pontos de vista e crenças, em especial de pessoas e comunidades que possam ser ignoradas ou marginalizadas.” A respeito das “notícias falsas” o compromisso seria com a autenticidade fática e não com o “acerto” ideológico, teórico ou doutrinário: “Reduzir a disseminação de notícias falsas no Facebook é uma responsabilidade que levamos a sério. (…) Existe uma linha tênue entre notícias falsas e sátiras ou opiniões. Por esse motivo, não removemos notícias falsas do Facebook, mas, em vez disso, reduzimos significativamente sua distribuição, mostrando-as mais abaixo no Feed de Notícias.”

Além disso, para definir os conteúdos que mereceriam essa redução de visibilidade, o Facebook anuncia que se vale de verificadores “independentes”, o que pode ser entendido como “imparciais” pelo consumidor que acessa essas políticas. Mais do que conteúdos de um documento ou anúncio do fornecedor, há uma aparência de imparcialidade, dado fático relevante para o Direito do Consumidor. O Facebook não alerta seus consumidores sobre estarem acessando um espaço predominantemente de ideias “progressistas” ou uma rede que irá direcionar a visibilidade de conteúdos nesse sentido.

Assim, para o consumidor que acessa a rede, em troca dos dados de que dispõe e dos anúncios a que submete, a propaganda do fornecedor do serviço é no sentido de que ele encontrará uma rede “imparcial”, na qual, visões diferentes terão o mesmo espaço e nem mesmo as “fake news” serão absolutamente censuradas, mas apenas terão a sua visibilidade reduzida.

A rede Youtube (https://www.youtube.com/about/policies/#community-guidelines, acesso em 08.04.2020) é mais enfática em sua autonomia de política de conteúdo, mas também denota propósito de neutralidade, pois seus tópicos basicamente remetem-se a atos ilícitos e são introduzidos por um apelo ao “bom senso”.

O Twitter (https://help.twitter.com/en/rules-and-policies/twitter-rules, acesso em 08.04.2020) é explícito numa teleologia de “liberdade e segurança”, também denotando ao consumidor neutralidade político-partidária.

Gradualmente, cresceu a controvérsia acerca da censura de páginas de cunho “de direita”, variando de movimentos liberais a temáticas morais cristãs (católicas em especial). Exclusões de perfis e conteúdos, redução de visibilidade e “desmonetização” (incentivo à não produção) de conteúdos passaram a ser crescentemente reportadas desde 2018. De presidentes a religiosos, de doutores em psicologia a militantes liberais, os temas censurados são variados, mas com uma base filosófica comum. Até mesmo o debate em torno da formatação do distanciamento social diante de epidemia encontrou censura de perfis de autoridades estatais por tais empresas privadas, que julgaram que determinadas opiniões seriam “perigosas por contrariar especialistas”.

No ano anterior já havia s ao ponto de o controlador do Facebook ser chamado a depor em comissão de inquérito do Congresso dos Estados Unidos. A hipótese, inclusive por ele reconhecida, é que há um fator humano nesse controle, exercido por profissionais da área de comunicação social, na qual há um viés predominantemente à esquerda, especialmente nos centros urbanos em que se situam (naquele caso, região de São Francisco, Califórnia).

A posição dos produtores ou divulgadores de tais conteúdos é juridicamente delicada, pois se trata de relação comercial facultativa entre as partes.

A questão da existência de excessos na “moderação de conteúdo” é uma apaixonada discussão fática, indissociável de julgamento ideológico. Aqui será adotada apenas como HIPÓTESE e em vista do interesse do leitor, caso já tenha tido experiências que julgou como censura em redes sociais por viés ideológico.

Quais os direitos do consumidor que adere a serviço que se aparenta ideologicamente imparcial e como repositório confiável de informações e notícias, quando a rede social se revela comprometida com determinado viés político-partidário, moral ou ideológico, não declarado?

HERMENÊUTICA

Em primeiro lugar, é inequívoca a relação de cada membro da rede social com o fornecedor de serviço. Com possível exceção àqueles que tem uso puramente comercial da rede, os usuários cadastrados são consumidores finais, ainda que não pagantes em dinheiro, nos termos do art.  e o seu único parágrafo, no Código de Defesa do Consumidor. Utilizam o produto de modo final, em troca de constituírem audiência para anúncios, para cuja personalização e eficácia contribuem, individual e coletivamente, com informações pessoais, a começar por uma bastante sensível e das quais podem derivar, estatisticamente, dados probabilísticos de renda, escolaridade, localização geográfica e até hábitos de consumo quem são os seus amigos, conhecidos, ídolos, temas, assuntos ou marcas. A remuneração a que se refere o art. 3º, ao definir o fornecedor, pacificamente, não necessariamente advém do consumidor final como requisito à configuração da relação de consumo.

Identificada a relação de consumo, o art. 4º impõe o reconhecimento da vulnerabilidade dos usuários (consumidores finais), bem como o dever de transparência e a atração do dever de ação governamental em defesa do consumidor. O art. 5º incumbe dessas missões gerais o Ministério Público, Defensorias Públicas, delegacias especializadas de polícia, PROCONS, Associações Civis e o próprio Poder Judiciário, notadamente por meio dos Juizados Especiais, quando provocado pelos interessados.

A falta de transparência, com falsa propaganda de neutralidade ou mera ocultação de compromisso ideológico, fere direito básico do consumidor (art. 6º, III e IV), para cujo exercício o consumidor poderá contar com a inversão do ônus da prova (inciso VI), razão pela qual caberá ao fornecedor, em juízo, comprovar que agiu em conformidade com as suas políticas e aparências de neutralidade, quando da censura, restrição ou bloqueio de determinados canais de informação de terceiros agregados aos seus serviços.

É importante frisar que esse vício pode ser, em tese, imputado desde o momento da adesão ao serviço, vez que a oferta (art. 31) deve “assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades (…)”. Do mesmo modo, “É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços” (art. 37, § 1º).

Hipoteticamente, o fornecedor pode responder de modo objetivo (sem necessidade de demonstração de culpa) por danos, inclusive morais, decorrentes desse vício na prestação no serviço. Isto é, o consumidor que fez da rede a sua principal fonte de informações e relacionamentos pode experimentar, e ter indenizados, os danos morais decorrentes da eventual falsidade da neutralidade aparentada e propagandeada. Em suma, pode ter sido ludibriado a participar e incentivar ambiente social e serviço comercial frontalmente contrários aos seus valores e à sua identidade pessoais, ou mesmo ao seu sentimento religioso. A atração de um consumidor a um consórcio ideológico contrário à essência de suas convicções, por meio de propaganda enganosa de neutralidade, objetividade e imparcialidade, certamente traz dano ao sentimento íntimo e à reputação social da pessoa. Pode ser caso de dano moral indenizável e com nexo causal evidente com o defeito e a falta de transparência do serviço.

Esse dever de indenizar não pode ser subtraído por cláusula contratual proposta na adesão ao serviço (“aceitação de termos”), vez que seria nula, nos termos do art. 51I do CDC, que veda os chamados “disclaimers”enquanto exonerações e renúncias antecipadas nas relações brasileiras de consumo.

O Art. 14, nesse sentido, prescreve que “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”, enquanto que o art. 17 equipara aos consumidores (como pessoas elegíveis a indenizações) até mesmo todas as vítimas do evento. Isso pode estender a responsabilidade do fornecedor da rede social a pessoas externas à rede de usuários, caso abrangidas pelo evento, ainda que indiretamente.

Nos termos do artigo 28, a responsabilização por tais atos, em infração à Lei e em abuso do direito privado mencionado no início do artigo, pode recair sobre todas as empresas e acionistas do grupo econômico do fornecedor do serviço da rede social. Essa responsabilidade, nos termos do art. 34, ocorre ainda que o ato seja atribuído aos prepostos do fornecedor (o que poderia abranger não apenas funcionários, mas igualmente os verificadores independentes de conteúdo contratados pelo fornecedor).

Mas a questão pode ir além da responsabilidade civil por danos, chegando às sanções administrativas, de multas à suspensão do serviço, passando à imposição de contrapropaganda para esclarecimentos (arts. 56 e 60). Sendo a verdade fática, a autoridade administrativa e o Judiciário, este mediante provocação, poderiam impor que o “feed” da rede social anunciasse e esclarecesse o próprio ardil (eventualmente) perpetrado pelo serviço que se anunciou “neutro”, embora comprometido com determinado espectro ideológico ou grupo político e partidário.

Por fim, merece destaque o art. 66, que torna crime afirmação falsa, ou mera omissão, sobre a natureza e as características do produto. Havendo determinado compromisso ou preferência ideológico-partidária no serviço, a mera omissão basta para a configuração do crime. Com maior força, isso se verifica quando há falsa afirmação de neutralidade. A conduta típica aqui não exige que o agente saiba da falsidade da sua afirmação ou da contradição entre a sua omissão e a aparência do serviço. Basta o fato para o crime. Agora, se houver prova do dolo do agente, ou de quebra de dever profissional de cuidado a esse respeito, incide o art. 67, com pena mais elevada. A diferenciação é mais relevante quando a suposta imparcialidade e o “combate” às “fake news” é propagandeado como ao encargo de bons (portanto, imparciais) jornalistas. Ficaria clara a quebra do dever de cuidado e a pena mais elevada para tais coautores do crime.

CONCLUSÃO

Assim, sentindo-se o consumidor lesado pela falsa informação de imparcialidade e objetividade de provedores de serviços de redes sociais, ou mesmo pela omissão de tais fornecedores quando beneficiários de aparência de neutralidade político-ideológica, dispõe, em tese, de ação individual, sem prejuízo da atuação de autoridades administrativas (PROCON, MJ), Promotorias e Delegacias de Defesa do Consumidor, e eventuais associações civis com tais finalidades.

João Guilherme Duda

Advogado pela UFPR, Economista pela FAE, Mestre em Políticas Públicas pela UFPR, Sócio da JG Duda Advogados e Corregedor-Geral Adjunto da OAB/PR.