O direito internacional atual comporta um marco inicial na celebração do Tratado de Vestefália (em 1648). Nele, como elementos caracterizadores do Estado instituíram-se: a base territorial (ou território), uma população estabelecida sobre essa área (povo) e um governo soberano face às autoridades exteriores. Neste artigo vamos nos debruçar especialmente sobre as dificuldades atuais do elemento territorial no contexto digital.
O Estado detém jurisdição própria que é aplicada em todo seu território – delimitação espacial (física) na qual o governo pode exercer seu poder. Em caso de conflito entre normas de diferentes soberanias para uma mesma situação concreta, o direito internacional recorre aos tratados, aos princípios gerais do direito e aos costumes, de acordo com o Estatuto da Corte de Haia, 1920.
Os costumes são regras produto do consentimento dos cidadãos, já os princípios gerais do direito referem-se aos princípios reconhecidos por todas as nações civilizadas, enquanto os tratados são documentos de caráter vinculante (obrigatório) às partes (Estados) participantes – com assinatura, ratificação e aceitação.
No Brasil, os tratados se localizam hierarquicamente abaixo da Constituição e em grau de paridade com as leis internas. Apenas os tratados que versam sobre direitos humanos ostentam hierarquia constitucional (se aprovados com quórum de emenda constitucional). Assim, entre um tratado internacional e uma lei infraconstitucional de mesma matéria, prevalece o mais novo.
Com a expansão e a difusão da Internet pelo mundo, conflitos internacionais passaram a não serem satisfeitos com os antigos critérios territoriais e as fontes (tratados, costumes e princípios) do direito internacional. As relações se dão em um espaço comunitário internacional e instantâneo de conexões, de qualquer lugar do mundo, a qualquer momento. Não são mais privilégio de alguns poucos aptos a superar as antigas barreiras de língua, cultura, transportes e comunicações. A velocidade e o volume das relações atuais fizeram ascender a necessidade de uma legislação supranacional e de uma nova abordagem do direito internacional.
Para o direito internacional, o direito aplicável, em caso de extrapolação dos limites territoriais, deveria observar o local em que ocorreu o ato ou o local dos efeitos do fato, entretanto, a identificação do local em que o ato ocorre ou reverbera seus efeitos não é tão simples no mundo virtual. Para efeitos de exemplificação, imagine-se a compra de um determinado robô cirúrgico por meio de um site com terminação “.com”. Em tese, os sites com essa configuração localizam-se nos Estados Unidos, no entanto, a experiência mostra que muitos sites adotam essa terminação apenas por estarem registrados naquele país, sem, contudo, estarem fisicamente no local. Muito mais complexa que a nacionalidade do domínio é a delimitação do local dos dados (servidores) e dos sujeitos efetivamente participantes da relação. O site “.com” pode estar hospedado num servidor na Índia, ambos sob controle de uma empresa sediada em Luxemburgo, com matriz e diretores trabalhando na Inglaterra e acionistas (inclusive controladores) espalhados pelo mundo.
- Nesse caso, qual seria o local do ato (compra)?
- Qual seria o direito aplicável se a empresa fabricante fosse inglesa?
- Qual o local mais relevante para a efetividade da decisão?
- Se ficasse comprovada a relação consumerista, as leis do país do consumidor, no caso do Brasil, seriam aplicáveis?
Outro exemplo, imagine que Juan, argentino que mora no Brasil, ofende sua ex-mulher italiana, que mora na Espanha, via site hospedado na Alemanha, por empresa sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. O ilícito se consuma em todos os lugares que a discórdia fica conhecida, entretanto, se a ex-esposa o processa no Brasil e ele é condenado aqui (lex loci), será que o juiz brasileiro poderia ordenar o fechamento do site que se encontra na Alemanha?
O direito digital nasceu com o grande desafio de atuar nesse ambiente global. Se, por um lado, o direito tradicional sempre resolveu a questão do direito aplicável por meio do princípio territorial, atualmente, a sociedade digital rompeu com essas barreiras geográficas.
Recentemente, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) tentou resolver algumas dessas questões. O art. 11 da Lei dispõe que será aplicada a lei brasileira se a atividade (coleta de dados, por exemplo) ocorrer no Brasil, assim, mesmo se o provedor não tiver filial aqui, a legislação aplicável poderá ser brasileira. Por isso, desde julho de 2014 empresas estrangeiras, como a Google, o Youtube e o Facebook tiveram que se adaptar às leis do país.
De fato, o direito digital tem se apresentado como um sobre-direito. O Marco Civil estabeleceu a necessidade de adaptá-lo e aplicar ao caso concreto princípios conhecidos do direito internacional, tais como o do local do ato (lex loci actus), do foro da demanda (lex fori), do local em que o contrato foi firmado (lex loci contractus), do local do ato ilícito (lex loci delicti), do local da obrigação (lex loci solutions), do domicílio do consumidor ou do réu (lex domicilii), do local dos efeitos (lex domni), do local da moeda (lex monetae), e assim por diante.
Fenômenos como a informática revolucionam a vida em sociedade e, consequentemente, induziram também à revolução dos conceitos do direito digital e internacional. Assim, é fundamental que sejam propiciadas formas de proteção à pessoa humana nesse novo cenário, interna ou internacionalmente. Como juristas, resta-nos tentar apresentar soluções para essa nova realidade, adequando-as juridicamente e apresentando-nos para trabalhar os conflitos que delas surgem.
Por conjuntura política e razões práticas irresistíveis, a tendência é de aceleração da integração da economia brasileira neste contexto global. Com isso, o direito internacional deixa os recantos acadêmicos, diplomáticos e de grandes corporações para ingressar na solução de problemas jurídicos absolutamente quotidianos de empresas e patrimônios locais de todos os portes.