Compliance em pequenos e médios fornecedores da administração pública

por | 06/05/20

IINTRODUÇÃO: COMPLIANCE É INTERESSANTE A TODOS OS PORTES DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS 

O universo de contratantes com a administração pública também inclui (de modo incentivado) micro e pequenas empresas. Mesmo aquelas de médio porte possuem aspectos institucionais que contrastam com grandes empresas, a começar pela ausência de um jurídico interno qualificado e de mecanismos internos de prevenção e alocação de responsabilidades.

Nesse contexto, é relativamente raro se encontrarem empresas dotadas de programas de integridade (compliance) formalizados e, sobretudo, postos em prática.         

A preocupação tradicional das licitantes de até médio porte foca-se nas sanções administrativas da Lei 8.666/1.993 (em especial a suspensão do direito de licitar), nas ações de improbidade, nas tomadas de contas extraordinárias e, eventualmente, em tipos penais. Não raro, as condutas pautam-se somente em intuição moral e experiência, sem um estudo de riscos e um código claro de prevenção e alocação de responsabilidades.

O ano de 2014 marca uma mudança legislativa, com a entrada em vigor da Lei Anticorrupção, a qual prevê, para hipóteses de fraude bem abertas e variadas, responsabilidade objetiva (sem necessitar de prova de culpa). As punições pecuniárias vão do valor da vantagem auferida até 20% do faturamento bruto do último exercício – sem prejuízo da reparação do dano e de mais sanções previstas em outras normas. Esta mesma lei prevê que a multa poderá ser atenuada diante da “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”. Inaugura-se a era do compliance (tema antes mais presente no mercado financeiro), nas contratações públicas, de todos os tamanhos. 

Em acréscimo, desde então, alguns estados passaram a tornar obrigatória a existência dos programas de integridade em seus fornecedores, ressalvando apenas EPPs e MEs. O projeto da nova lei de licitações (substitutivo da câmara ao PL 1.292-F/95 do senado, PLS Nº 163/95) prevê a possibilidade de tais programas serem obrigação contratual em contratações de vulto, bem como, para quaisquer contratações; sua existência como critério de desempate ou de atenuação de sanções administrativas ou como condição de reabilitação inidônea. 

O Decreto 8.420/2015, sem se restringir à União, regulamentou a aplicação das sanções previstas na Lei Anticorrupção, criando o Processo Administrativo de Responsabilização. No seu art. 17, destaca-se o aumento da multa de 1 a 2,5% do faturamento se houver ciência ou tolerância por gerências ou diretoria, dentre outros critérios de continuidade, reincidência, valor do contrato em questão, resultados financeiros da empresa e eventual interrupção do serviço público contratado. Já o artigo 18 estabelece descontos na multa, havendo, denúncia espontânea, colaboração com a investigação não consumação ou reparação do dano. O maior desconto na multa (1 a 4% do faturamento do último exercício) advirá se a empresa possuir e aplicar um programa de integridade, conforme os parâmetros estabelecidos no Capítulo IV.          

 Assim, lá estarão as balizas de um programa de compliance útil.

II. DESENHO BÁSICO DE UM PROGRAMA DE COMPLIANCE ORIENTADO A PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS LICITANTES 

O decreto define o programa como mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública (…) de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica.           

Para que o programa surta os efeitos desejados para empresa (seja considerado para mitigação de sanções, grosso modo), deve-se levar em conta que os seguintes critérios servirão para avaliar a existência de compliance e o seu peso para descontos da multa: 

  • Apoio ostensivo da diretoria ao programa junto aos demais colaboradores da empresa;
  • Uniformidade de padrão ético esperado para todos os escalões;
  • Extensão a terceirizados e fornecedores, se necessário, conforme o risco envolvido, prevenindo-se elisão de responsabilidades;
  • Treinamentos periódicos;
  • Análises de riscos, monitoramento e adaptações periódicas dos programas;
  • Demonstrações contábeis hígidas, sujeitas a controles internos;
  • Procedimentos específicos para a prevenção de corrupção de agentes públicos;
  • Departamento ou pessoa com autonomia, autoridade e canal aberto de ouvidoria para fiscalizar internamente o programa;
  • Previsão das sanções disciplinares aos colaboradores;
  • Mecanismo de interrupção imediata e correção de danos e irregularidades;
  • Mecanismos preventivos na contratação de terceiros e colaboradores;
  • Transparência em doações em campanhas políticas.

O decreto em seguida trás consigo um senso de razoabilidade ao considerar especificar diversos critérios de porte, complexidade e organização da empresa para a avaliação do programa conforme os critérios acima. Isto é, é possível se obter uma pontuação máxima (redução máxima) sem o pleno cumprimento de todos os itens acima, consideradas a aplicabilidade reduzida deles para empresas com poucos níveis hierárquicos de decisão.

Consideramos previsões e práticas factíveis para empresas de qualquer porte e que podem contribuir com a satisfação dos critérios de avalição do programa de integridade: 

  1. Reunião e apresentação do programa a todos os colaboradores com apoio da diretoria (sócios administradores ou empresário titular), bem como seu envio para aqueles que possuam e-mail e entrega de versão impressa para os demais;
  2. Elaboração de código de conduta interno prevendo que se aplica a todos os colaboradores, sem distinção de função;
  3. Previsão no código de conduta de que deve ser anexado para anuência nas contratações de terceirizados-chave em matérias de riscos de corrupção, tais como representantes locais em licitações, consorciados, despachantes de toda espécie (v.g. ênfase nos que trabalhem na obtenção de licenças urbanísticas, ambientais, fiscalizações trabalhistas ou interajam com fiscais aduaneiros ou fazendários) e advogados. neste tópico é de suma importância a experiência da diretoria, própria ou absorvida de outros empresários, para ser mais específico com os colaboradores, próprios e terceirizados, que interagem com agentes, órgãos e atos administrativos ou jurisdicionais nos quais os pedidos de propina sejam endêmicos;
  4. Previsões (e observância) no Código de Conduta de periodicidade de treinamentos, relatórios de cumprimento e revisões;
  5. Previsão em Código de Conduta e adoção concreta de aprimoramento constante nas práticas contábeis (gerenciais e fiscais), inclusive no que tange às consultorias tributárias;
  6. Previsão em Código de Conduta de que medidas cada colaborador (preferencialmente específica para funções e níveis) deve tomar caso ocorra ou perceba estar em vias de ocorrer solicitação de propina;
  7. Atribuição de responsabilidade clara a um dos colaboradores da empresa, se possível não o sócio controlador, nas matérias de compliance e ouvidoria, inclusive com ramal ou e-mail específico ou ainda, no mínimo, previsão expressa de que ligações relativas a denúncias devem ser repassadas ao responsável sem filtros, ainda que anônimas;
  8. Previsão no Código das sanções aplicáveis na medida do que possível e compatível com a realidade jurisdicional da Justiça e do Processo do Trabalho – neste ponto é interessante já estabelecer que medidas tomar havendo risco de competência jurisdicional trabalhista e conjunto probatório ainda imaturo das infrações do colaborador, de modo a se conciliar o interesse público sem sujeitar a empresa a indenizações justamente em favor do infrator;
  9. Previsão de mecanismos de comunicação entre níveis hierárquicos e entre autoridade de compliance e diretoria para resposta rápida a riscos e realidades de fraudes em prejuízo da administração pública;
  10. Métodos de investigação preliminar de terceirizados e consorciados, bem como critérios para que remunerações variáveis não se tornem incentivos a que os agentes privados cedam às solicitações de vantagens pelos agentes públicos;
  11. Previsão de observância à legislação eleitoral, sem regras rígidas, dada a sua frequente mutação, tanto pela empresa quanto por todos os seus colaboradores. 

III – CONCLUSÕES 

 A experiência com situações críticas e a habilidade de prevenir, detectar e corrigir fraudes prejudiciais à administração pública no âmbito de sua empresa é mais uma, dentre outras, tantas, exigidas do empresário no Brasil.

 “O Brasil não é para principiantes”, disse ninguém menos que o maior artista brasileiro do século XX, o maestro Tom Jobim, inspirando o título da obra do saudoso Professor Belmiro Valverde Jobim Castor (O Brasil não é para amadores: Estado, governo e burocracia na terra do jeitinho). Tanto a frase do artista quanto o livro do professor trazem consigo a ideia aprendida na experiência pelos empresários brasileiros: aqui as maiores injustiças se cometem sob os mais nobres enunciados. Especificamente na vida pública (e aqui ela se agiganta sobre a privada de modo raro em democracias), bacharelismos expressos por autoridades burocráticas não raro possuem – de caso pensado ou por acidente – o efeito contrário ao explícito. 

A incorporação do compliance (obrigatório) como meio de prevenção à corrupção em nosso Direito Administrativo pode ter o efeito de “seleção adversa”: tornar mais difícil a competição por empresas menores ingressantes no mercado, com estruturas menores de diluição de responsabilidades entre executivos profissionais e disponibilidades financeiras reduzidas para a contratação da elaboração do seu programa de integridade.

 Os requisitos de avaliação do programa, na realidade de pequenas e médias empresas, pode exacerbar a falha econômica denominada agency, agravando o conflito entre os interesses dos colaboradores e da empresa, com os ônus de providência recaindo na figura, em regra, do empresário que é ao mesmo tempo o detentor do capital e da administração da empresa. Do outro lado, privado, as hipocrisias e os cinismos nada amadores, ou principiantes, podem se instalar, a partir do programa de integridade, por iniciativa da própria empresa – desenhando-o desde o início para reduzir sanções e aparentar lisura em realidades absolutamente (indevidamente) anestesiadas e adaptadas à solicitação constante de propinas pelos agentes públicos brasileiros.

Este pequeno artigo, mais do que criticar a obrigatoriedade e risco de trabalhos de fachada nos programas de integridade de empresas de médio porte, espera sinalizar a possibilidade de a experiência do empresário, associada a bons profissionais (advogados experientes em contratações públicas), gerar programas de integridade e códigos de conduta que efetivamente possam gerar valor à empresa, não apenas mitigando eventuais sanções no futuro, mas, principalmente, prevenindo situações de conflito de interesse nas quais colaboradores obtenham os bônus da corrupção repassando o ônus à empresa e aos seus sócios ou acionistas. É possível, viável e necessário.