Crimes virtuais na era da sociedade digital

por | 01/05/20

A necessidade de instrumentos que auxiliassem o homem a processar informações não é recente, há séculos os pastores já utilizavam pedras para controlar o tamanho do rebanho. Esse sistema utilizado milenarmente, ao longo da história, até hoje é conhecido pela matemática como “correspondência um a um” e é apenas um exemplo dos primórdios do processamento de dados. Além desse, mais tarde tivemos a evolução lenta e gradual da internet.

O conceito que deu origem à Internet – uma interligação de informações por meio de uma rede única – teve origem durante a Guerra Fria e foi criado como meio necessário para garantir a perpetuação das informações bélicas, em caso de bombardeio de uma das bases militares americanas. Mais tarde, esse mesmo sistema foi adotado nas Universidades com objetivo acadêmico: alunos e professores o utilizavam como um canal de compartilhamento, propagação e armazenamento de conhecimento.

Abaixo um breve histórico da evolução da Internet:

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Nesse contexto, nasce mais tarde a utilização da internet para fins comerciais: as redes sociais ganham força e invadem a vida das pessoas ao redor do mundo. Contudo, tudo indica que de lá para cá essa ferramenta revolucionária se afastou em parte dos seus ilustres fins originais e apresentou uma faceta de novo Estado da Natureza de Hobbes (“o homem é o lobo do homem” e agora faz justiça com o próprio mouse).

Nos últimos anos, a Internet deu asas a pessoas revoltosas capazes dos crimes mais bárbaros apenas por estarem acobertados por um aparente anonimato – o direito deu lugar ao “vale-tudo” e à refiguração da lei de talião. Parece que a liberdade de expressão se sobrepõe abusivamente aos direitos à privacidade, à intimidade, à honra, à imagem e à reputação. Aplicativos como o Lulu, AskSecret e perfis falsos criaram um ambiente propício ao cyberbullying e às mais variadas práticas de crimes contra honra, tipificadas no Código Penal (capítulo V).

Pode parecer exagero tratar o assunto de forma tão séria, mas pesquisas mostram o contrário. Em 2017, o jornal Estadão publicou uma pesquisa que mostrava que 1 em cada 4 crianças já havia sofrido bullying na internet. Houve também o caso da influencer Aline Araújo, que se suicidou após sofrer “linchamento virtual” na internet.

 Cada meio de comunicação (rádio, televisão, telefone) trouxe dificuldades diferentes. O mesmo ocorre com a Internet. Existem peculiaridades que devem ser consideradas no enfrentamento de ilícitos virtuais – o Direito Digital nasceu com a missão de solucionar essas questões e tratar das peculiaridades dessa nova ferramenta.

Por sua vez, os direitos da personalidade tratados na Constituição continuam invioláveis e embasam todo o ordenamento jurídico e, portanto, a sua violação deve ser exemplarmente punida (quem causar o dano deve repará-lo); e em casos praticados por menores, os pais ficam responsáveis pela reparação civil (Art. 927, 932, CC). Ademais, além do enquadramento constitucional civil e penal de alguns ilícitos, temos também outras legislações específicas aplicáveis, como a Lei Federal 13.185/15, que determina que fica configurado o cyberbullying quando a internet for utilizada para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial; e também o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que estabelece princípios, garantias e deveres para uso da internet, visando promover o uso responsável desta ferramenta tecnológica.

  • APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INTERNET. USO DE IMAGEM PARA FIM DEPRECIATIVO. CRIAÇÃO DE FLOG – PÁGINA PESSOAL PARA FOTOS NA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES. RESPONSABILIDADE DOS GENITORES. PÁTRIO PODER. BULLYING. ATO ILÍCITO. DANO MORAL IN RE IPSA. OFENSAS AOS CHAMADOS DIREITOS DE PERSONALIDADE. MANUTENÇÃO DA INDENIZAÇÃO. PROVEDOR DE INTERNET. SERVIÇO DISPONIBILIZADO. COMPROVAÇÃO DE ZELO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE PELO CONTEÚDO. AÇÃO. RETIRADA DA PÁGINA EM TEMPO HÁBIL. PRELIMINAR AFASTADA. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. AUSENCIA DE ELEMENTOS. (Apelação Cível Nº 70031750094, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 30/06/2010)

Trata-se de afastar a sensação de “terra sem lei”, onde o mais forte pode afligir os mais vulneráveis, e promover a condenação dos réus em caso de infrações virtuais, assegurando uma função punitiva de forma a onerar o agente lesante pela ofensa cometida nas mídias digitais, demonstrando ao causador, ou responsável, que determinada conduta não será tolerada pela justiça (nem mesmo em meio virtual).

À Justiça resta o desafio de enfrentar debates em torno de assuntos que ainda não foram tratados em lei, ressignificar os limites da liberdade de expressão, lidar com a dificuldade de comprovação de autoria, e com a rapidez com que as decisões se tornam obsoletas devido à velocidade das transformações tecnológicas.

Já às novas tecnologias (aplicativos, redes sociais, e demais serviços digitais), cabe-lhes atender às regras de identificação dos usuários, comportar funções de apagamento de publicações por quem tenha sido ofendido na rede e preservar provas e dados do ofensor por um tempo mínimo. Além, é claro, da adequação aos princípios reguladores do Direito já consolidados.

Concluindo, a saída não é suprimir a liberdade de expressão – o que corresponderia à demolição das garantias individuais – mas passa por um alinhamento entre regra e conduta social, entre educação dos usuários e termos de uso do serviço. Só assim chegaremos mais longe, evitando que a maior conquista do homem se torne justamente sua maior inimiga.